quarta-feira, 31 de maio de 2017

Da “Ética do rosto” de Levinas aos múltiplos perfis da pessoa humana



Teve lugar no dia 26 de Maio, último dia de aulas, uma Palestra subordinada ao tema: "'Da ética do rosto' de Lévinas aos múltiplos perfis da pessoa humana".
A Palestra foi proferida pelo Reverendo Padre António Perretta, da Comunidade dos Missionários de Villareggia.
De seguida, publicamos na íntegra o texto seguido pelo Padre António ao longo da palestra

1.           Status questionis

Da “Ética do rosto” de Levinas aos múltiplos perfis da pessoa humana”: Este é o título do presente “dialogo” filosófico que vai reter a nossa atenção neste dia.
Considerando que o tema da pessoa humana é o mais recorrente da filosofia e é abordado segundo muitas facetas - às vezes, em grande contradição entre elas - nós escolhemos, como ângulo da perspetiva de investigação ou ângulo hermenêutico, o pensamento de Levinas, de raiz judaico-bíblica
Este tema se inspira na urgência de encontrar uma pista de resposta à crise ética atual, na qual, de um lado, a pessoa humana sofre inúmeros “abusos” e desrespeitos eidético-interpretativos, do outro lado, propõem-se muitos discursos sobre os direitos humanos e as urgências de encontrarmos formas de convivência pacíficas entre os povos.
Afferrami la mano, Gesù...
Pe Antonio Perretta, Missionário da Comunidade de Villareggia
Uma pergunta, que podemos definir na base do status questionis: será possível conviver em paz a nível familial, social, cultural, religioso, internacional… e mesmo consigo mesmo (nível pessoal) sem termos uma visão holística e concordada da pessoa humana?
Noutras palavras, mutuando uma pergunta da visão teo-filosófica hebraica: “que é o homem para te lembrares dele?” (Sal 8, 5), o Pensador bíblico (Autor Sagrado) responde com a sua visão eidético-sapiencial, inspirada pela visão teológica: “Quase fizeste dele um ser divino” (Sal 8,6). A definição do salmista não é categórica ou dogmática, mas aberta. Ela abre pistas de reflexões inesgotáveis.
Dizer que o Homem é um ser “quase” divino é proclamar uma identidade imanente e transcendente no mesmo tempo, mas toda para descobrir.
O contributo filosófico levinasiano, inscreve-se nesta tentativa nunca terminada que acompanha a história do pensamento humano para perceber “o que é a pessoa humana”, e Levinas oferece o seu contributo condensando a identidade pessoal na palavra e na experiencia do ROSTO.

2.           Dados biográficos


Nascido Emanuel Levinas no seio de uma família judaica, a Kaunas (Lituania), o pai um livreiro, Levinas logo teve contato com os clássicos da literatura russa, como Dostoiévski - tão citado em suas obras.
Aos doze anos, na Ucrânia, assiste à revolução de Outubro (1917). Mais tarde, estabelece-se na França (1923) e inicia seus estudos de filosofia em Strasbourg. Dirigindo-se a Friburgo (1928-1929), torna-se aluno de Edmund Husserl e Martin Heidegger, dos quais será um dos primeiros a introduzir o pensamento na França.
Retorna a Paris até que, tendo eclodido a II Guerra Mundial (1939), é capturado e feito prisioneiro pelos alemães. Exilado por cinco anos, não poderá mais esquecer a marca do ódio do homem contra o outro homem deixada pela violência nazista. No cativeiro foi escrita grande parte de sua obra De l’Existence à l’Existant (1947), publicada dois anos após o fim da guerra.
Durante dezoito anos (1946-1964), dedica-se à direção da Escola Normal Israelita Oriental de Paris. Leciona depois na universidade de Poitiers (1964-1967), na de Paris-Nanterre (1967-1973) e na de Paris-Sorbone (1973-1984). Faleceu em Paris em dezembro de 1995.





3.           Encontrar o rosto

Não vamos efetuar uma dissertação sobre todo o pensamento levinasiano mas, inspirados por uma sua intuição acerca do Rosto humano, desejamos melhor tratar do tema da pessoa humana que “eu sou” e que o “outro é”.
Uma experiência pessoal ajudou-me a aperceber melhor o que vou explicando. Há uns dias, indo da Casa do Gaiato, de carro até a cadeia de Boane, o carro fendia uma densa neblina. Cruzando com as pessoas, de longe apareciam figuras amorfas e sem cores: podiam ser qualquer coisa, até manequins ambulantes, ou robots… Mas ao aproximar-me delas, acontecia uma epifania dos rostos que delineava trações claros de homem, ou mulher, jovens ou idosos. Este aparecer do rosto, convidava-me e convidava-nos a trocar formas de gentileza: saudação, cruzamento de olhares que criava relações, embora fugaces, enquanto levavam o breve tempo de um cruzamento do carro com estes sujeitos.
Percebi claramente que sem encontrar o Rosto do ser humano não há moral, não há relação, não há vida social, religiosa, cultural, politica, familial. Tudo é cinzento e mecânico. Tudo pode ser “mortal”. Tudo é frio, destacado: IRRESPONSAVEL-incapaz de responder por… (não sei, não me interessa, não me diz respeito, não está comigo…: “SOU porventura eu o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9). É esta a frase mais terrível da tradição bíblica.
Precisamos “reencontrar o Rosto” do homem, homem e mulher, a humanidade (humanitas), sujeitos da vida e da história neste mundo que vivemos e em que vivemos. “No Rosto apresenta-se o ente por excelência”, “a verdadeira essência do homem”, contraposta ao fenómeno. Embora formado também pelo pensamento de Husserl, Lévinas recusa uma visão objetiva do Rosto como objeto, conteúdo: “O rosto está presente na sua recusa de ser conteúdo. Neste sentido, não poderá ser compreendido, isto é, englobado. Nem visto nem tocado”. Para Lévinas, não há fenomenologia do rosto mas sim revelação. O que é especificamente rosto não é objetivável. A revelação do rosto è dinâmica. Produz-se no encontro de pessoas com pessoa. Por isso não se descreve, mas se acolhe.
Contra Heiddeger, Lévinas afirma que o rosto, na epifania, não só se revela como ser, mas como alteridade absoluta.
Para Levinas, a crise ética da cultura ocidental, que causou um tamanho estrago, se deve à realização de seus próprios princípios inspiradores que desde o mundo grego manteve-se na idade média e prolongou-se através da modernidade até nossos dias. Esta opção privilegiou a esfera onto-gnoseológica do ser e do conhecimento, numa denominação clássica; ou do objeto e da ciência numa formulação mais atual, deixando para o segundo plano as pessoas, a convivialidade e a sociedade com suas exigências éticas.



da Egologia-egolatria à alteridade-responsabilidade


Para Levinas, “ser” como “ser” é interesse. É luta que visa unicamente a sua permanência, o manter-se sendo. Esta luta onde todos visam preservar e ampliar seu espaço existencial se converte em conflito e limitação recíproca. Nela a paz é instável, não resiste à luta dos interesses. Em sua busca de manter-se sendo, o ser se caracteriza pela totalização que consiste em transformar o outro no mesmo, como acontece com o alimento incorporado ao organismo (metabolização). A totalização preserva o ser, o sujeito, pela negação da alteridade, que se dá pela violência e tem na guerra a sua última palavra. É um processo de fagocitose do “outro”, movido pela “egolatria” ou culto pelo “seu ser”.
A concepção egológica em que se busca salvar a própria pele, em detrimento do outro, baseia-se na convicção que a alteridade e a exterioridade são limites ontológicos (para o ser da pessoa individual=EGO) e não se hesita em anular o outro para manter ou ampliar os domínios do Eu, constituído como mesmo pela totalização. Hobbes diria, para confortar tal visão: HOMO HOMINI LUPUS, o Homem é lobo para o homem. 
A fixação no ser (onto-gnoseologia) torna-se violência que violenta, porque visa manter-se mesmo excluindo o outro e o seu ato extremo é o assassinato. Isto sugere a Levinas a urgência de pensar no “outro modo que ser” a alteridade, a qual, escondida no pensamento e nas vivências de nossa cultura, apresenta-se como fundamento de um convívio ético, capaz de reconhecer a exterioridade (a objetividade da presença) do rosto do outro.
Outrem existe e a sua existência não depende de mim e das minhas visões dele. O outro-Outro é dado, posto diante do EU, como alteridade que define e conjuga a minha liberdade. 
A alteridade reconhecida e reencontrada abre a passagem do “ser” ao outro na Responsabilidade pelo Rosto. O outro com quem o Eu se relaciona se apresenta como Rosto, e não pode ser contido na sua percepção, tampouco subsumido aos seus poderes de totalização, de fruição e posse. Se a ética antecede qualquer relação com o mundo isso significa afirmar que a ética é “a impugnação da espontaneidade do Mesmo pela presença do outro, que irrompe como Rosto”. Origina-se então a Ética do Rosto, como Ética que parte do Rosto do outro e determina uma orientação comportamental positiva e não absorvente da alteridade.
Urge, segundo Levinas, um processo de “reconversão” como momento de passagem do ser (do EU) ao outro, mediante a vergonha advinda do esquecimento do Outro. Esta reconversão é “conversão”, metanoia, como mudança de pensamento, e teshuva, como mudança de direção. A metanoia reconverte a onto-gnoseologia (cultivo do ser do EU, na teshuva, uma mudança vital em direção afetiva-efetiva pelo Rosto do outro.
A Ética do Rosto coloca as condições de pensar a ética desde o “outro”. Na resposta ao outro humano, o Eu se torna bondade. Por isso se esclarecerá que a bondade consiste em colocar-se no ser de tal forma que o outro conte primeiro que o Eu. Dessa forma, a responsabilidade se apresenta como a resposta concreta ao “apelo” do outro, em forma de compadecimento. Tal responsabilidade se agrava, chegando à substituição.
Relacionar-se com outro ser humano é recebê-lo antes de pensá-lo e antes de decidir ou não por seu recebimento. É um recebimento anterior à liberdade e à decisão de receber ou rejeitar, isto é, relacionar-se com o outro, não é senão recebê-lo por atribuição e não por opção: “A responsabilidade é o que exclusivamente me incumbe e que, humanamente não posso recusar” LEVINAS, E. Ética e Infinito: Lisboa: Edições 70, 1982. p.93
O outro me vocaciona a sair de mim mesmo para vê-lo, apercebe-lo, percebe-lo, recebe-lo! Por isso é possível haver no mundo solidariedade, fraternidade, bem como o gesto gentil de um simples “o senhor primeiro” diante de uma porta. Dessa forma, a subordinação não é servidão, ao contrário é convocação à humanização do ser humano.
A partir dessa elaboração se evidenciará uma nova semântica da palavra ética, para assim se justificar a interpretação dessa ética como responsabilidade.
Levinas clarifica que “o rosto fala-me e convida-me a uma relação sem paralelo com um poder que se exerce, que seja fruição quer seja conhecimento”. A relação com o rosto do outro não é de conhecimento, de necessidade, mas identifica-se com um desejo do outro no qual transparece o infinito. O infinito brilha no rosto do outro e me convoca.


4.           O PRINCÍPIO PERSONALISTA


A Ética nasce desde o sensível, como preocupação em face das necessidades dos Outros, do qual estou separado, mas onde a linguagem (discurso) torna-se o medium para a relação.
A Ética do Rosto abre-nos ao princípio da Doutrina social da Igreja que chamamos de “princípio personalista”: a pessoa ao centro para uma humanidade reconciliada e verdadeiramente humanizada.
“O homem é o primeiro caminho da Igreja e é para ele que ela dirige o seu interesse e atenção”. Levinas ajuda-nos a definir melhor “qual homem”: não se trata de um Ego monádico, fechado em si mesmo, causador de guerras para ele “ser”, mas, na sua visão filosófica, trata-se do Ego que reconhece outrem-Outrem e, diante do Rosto do outro, descobre o mistério que o transcende e se torna capaz de “responder” responsavelmente.
A luz deste princípio personalista colima com a consciência que a Igreja tem da alta dignidade do ser humano, querida assim pelo próprio Deus.
Porque os homens vivem em sociedade, a Igreja dirige a sua atenção à vida social, para fazer amadurecer a consciência do valor da dignidade humana. Mas não se pode falar corretamente da dignidade humana sem a consciência que o homem é um “Rosto” concreto existente diante do EU.
Já Pio XII, na mensagem de rádio no Natal de 1944, indicava que “o homem permanece o fim, o alicerce e o sujeito” da vida social. Segue-se então que devem ser banidas as falsas imagens do ser humano e as visões redutoras que diminuem a sua dimensão interior e fazem dele um ser “deformado”.
Podemos, portanto, entender o princípio personalista como o princípio que reconhece a plena identidade do homem-Rosto, considerando-o na sua dimensão “pessoal”. Daqui a afirmação que a dignidade do homem é inviolável e intocável.


5.           A PESSOA HUMANA É “IMAGO DEI”

De acordo com a narração da criação, o homem é criado à imagem de Deus (Gn 1,27) que lhe infunde (insufla) o seu princípio espiritual, o Espírito (respiração/sopro = vento = ruah). Este princípio assegura a dignidade inalienável do ser humano.
O homem não é um objeto, mas um ser que goza de liberdade, sendo um ROSTO (zelem e demut, são as duas palavras hebraicas para indicarem a dimensão onto-dinâmica do Adão criado a “imagem e semelhança de Deus). Ele (homem) pode conhecer-se a si mesmo, possuir-se e doar-se livremente, para entrar em comunhão com outras pessoas e estabelecer uma aliança-amizade com o outro-Outro (Deus).
Especialmente na dimensão da “relação” nós constatamos que o ser humano provém de Deus que é Trindade e relação infinita. Nesta identidade relacional a sociedade encontra a sua primeira origem e a sua finalidade. O Rosto do homem retraça o Rosto de Deus trino, que vive numa dinâmica pericorética interpessoal. Por isso é que do Rosto de Deus o homem-Rosto aprende a perfeita relação para com o Rosto do outro.
Portanto, o homem é “chamado” (vocacionado-apelado) à relação global e integral, respeitando as três dimensões principais desta relação: EU (ponto de origem), o outro ser humano (dimensão horizontal) e o Ser Espiritual Superior (dimensão vertical).



6.           A PESSOA HUMANA E SEUS MÚLTIPLOS PERFIS

Desta conceção, podem-se destacar as várias dimensões da pessoa humana. O homem não é apenas um conjunto de células sem sentido ou o resultado de um caso como muitos pretendem crer. A pessoa humana possui um estatuto muito maior e mais profundo.
No passado, houve, no pensamento filosófico, sociológico, antropológico e económico visões muito reduzidas do homem, como se fosse um ser material, vindo do nada e indo para o absurdo. Algumas concepções limitadas exclusivamente às dimensões deste mundo foram defendidas com grande força em diferentes latitudes.
À luz da antropologia filosófica hebraico-bíblica, para entender e definir o Homem, precisa realçar e mostrar as verdadeiras dimensões da pessoa humana.
A primeira definição muito óbvia do ser humano é a que o descreve como uma “liberdade responsável”. Vejamos então algumas dimensões essenciais do ser humano, de acordo com esta visão.

a)      A unidade da pessoa-Rosto
A pessoa-Rosto é concebida e te-ontologicamente plasmado como uma unidade de corpo e alma, sendo a alma o princípio da vida do corpo. Esta unidade faz da pessoa o sujeito responsável de seus atos morais.
A pessoa é dotada de corporeidade, composta pelo conjunto dos elementos materiais. Ainda que, por consequência da atração do mal (pecado), a corporeidade esteja afetada, continua a ser o princípio da inserção do homem no mundo concreto, para a sua realização. O corpo presta-se para as tendências negativas da carne, mas é também ocasião para manifestar a sua liberdade.
A pessoa exposta à dificuldade deverá prestar atenção e olhar para o coração (ebr. Lev= principio promotor de decisões), princípio da vida espiritual. É aí que o homem se descobre maior do que a mera dimensão física ou material.
A alma é a forma do corpo: dá-lhe a possibilidade de ser um corpo vivo e humano.

b)      A abertura à transcendência e a unicidade da pessoa-Rosto
A pessoa-Rosto é “capaz de Deus”: aqui está uma definição bonita e famosa que explica que o ser humano, sendo criado por Deus, aspira ao infinito. O homem sente em seu coração, na sua alma, na sua inteligência a “tensão” para o que está para lá da finitude, o que está para além do tempo e do espaço: o que dura para sempre.
Mas como o finito pode pensar no infinito? Como pode possui-lo? Isto não é possível. Diz Levinas que o infinito aparece-nos como ideia no rosto de outrem e traça o caminho para compreendermos melhor o infinito do rosto. “O infinito no finito, o mais no menos que se realiza pela ideia do Infinito, produz-se como Desejo. Não como desejo que a posse do desejável apazigúe, mas como o Desejo do Infinito que o desejável suscita, em vez de satisfazer. Desejo perfeitamente desinteressado – bondade”. Atenção: trata-se de um desejo que não coisifica o outro, senão o deixa na sua plena “alteridade” e “exterioridade”.  
A atração para a verdade, para a beleza, para a bondade, para a liberdade é própria da pessoa humana. É o que se chama abertura à transcendência, que está para além do mundo sensível. O ser do homem é naturalmente “aberto”. Ele é capaz de se “auto-compreender” de se “auto-possuir” para se dar, de se “auto-determinar” em ordem ao seu projeto de vida.
O rosto do homem busca o Rosto do Criador: Sal 26,8: “Fala-vos, meu coração, minha face vos busca; a vossa face, Ó Senhor, eu a procuro”.
A partir dessas características, afirmamos que o homem é dotado de inteligência, afeto/capacidade de amar, consciência e liberdade. No entanto, não são estes elementos que definem propriamente a pessoa humana, porque eles são comuns, em diferentes medidas, a toda a humanidade e, além disso, podem existir e existem pessoas que não tem essas características (inteligência, consciência, etc. ...). O que faz a especificidade é o caráter “único e inimitável” de toda criatura humana. É a “singularidade” da sua história que não tem igual no passado e não vai ter no futuro. O homem é um ser que é desejado ou querido como tal por Deus, sem que haja uma “imitação” sua. Mesmo os gémeos são diferentes! O rosto de cada um é que o define. Não é a fotografia do rosto que pomos na carta de identidade para identificar a pessoa?
Na verdade, nenhum esquema preestabelecido pode conter a definição de um homem que é chamado a desenvolver-se “integralmente”.
A partir da identidade do ser humano e suas características, segue-se que a sociedade é justa na medida em que ela assegura o respeito pela dignidade do ser humano. Para fazer isso precisamos que todos possam considerar a identidade nobre de cada pessoa e aprender a reconhecer a “primazia” do outro.
A pessoa não pode ser manipulada para fins económicos, políticos ou culturais, etc. nem mesmo em nome do suposto progresso da comunidade social. O homem não pode ser sacrificado às leis do desenvolvimento. Pelo contrário, o desenvolvimento é que deve estar ao serviço da vida humana e do seu incremento. As autoridades sócio-políticas devem velar para que não haja violação da liberdade pessoal, de qualquer pessoa.

c)      A liberdade da pessoa-Rosto
Sendo criado corporal-espiritualmente (à imagem de Deus), o homem goza da liberdade e sente-se fortemente chamado a pôr em prática esta liberdade. O homem pode tender para o bem apenas no contexto da liberdade de que ele goza e busca apaixonadamente.
Ele aspira à livre iniciativa em ordem ao projeto da sua vida e da sua família. Isso leva-o a assumir a primeira e grande consequência da liberdade que é a responsabilidade. Ele é o “pai do seu ser” (Heidegger), pois gera-o através das suas escolhas, tanto positivas como negativas.
Responsabilidade no pensamento levinasiano é assim delineada: “Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz, ou não me diz respeito; … desde que o outro me olha, sou responsável por ele, sem mesmo ter que assumir responsabilidades a seu respeito; a sua responsabilidade incumbe-me. É uma responsabilidade que vai além do que faço. (…) Sou responsável pela sua própria responsabilidade”.
Citando Dostoievski, Levinas afirma: “Somos todos culpados de tudo e de todos perante todos, e eu mais do que os outros”.
No entanto, ao afirmar que o homem é livre, não se pretende abalizar ou aceitar a libertinagem, tão cara a uma má interpretação de “liberdade”.
A liberdade é, basicamente, “liberdade para”, ou seja, autodeterminação para amar, para fazer o bem, etc. Infelizmente, muitas vezes a pessoa confunde liberdade e libertinagem. A libertinagem não tem limites. Não conhece o respeito pelo outro e ignora, especialmente, a dependência do Ser Supremo (Deus).
Assim, a sociedade que quer ser verdadeiramente livre deve procurar o seu equilíbrio e cumprir as leis económico-políticas para não destruir o verdadeiro desenvolvimento da pessoa. Deve concentrar-se na eliminação das injustiças que bloqueiam o bom funcionamento de todo o corpo social.
A sociedade é livre, mas não para decidir tudo e o contrário de tudo, segundo o desejo daquele que a governa. Ela deve ter um código de conduta de base que seja inspirado no respeito pelo bem comum e pelo Rosto pessoal de cada um.
Para que a liberdade seja real, deve alcançar a verdade. O homem que se diz “livre” não pode seguir atrás do mal em nome da liberdade, porque seria uma falsa liberdade. A liberdade é a escolha do bem-verdade. O homem verdadeiramente é livre quando cumpre o bem: é isto que realiza a sua humanidade!
A verdadeira liberdade é atraída pelo que é certo e, em obediência à lei moral (aquilo que é justo objetivamente), ela chega à verdade.
A verdade e a liberdade não se opõem nunca à lei natural que a inteligência reconhece: ex. o facto de que não se deve matar outro é um direito natural que cada cultura deve reconhecer. A verdade e a liberdade pessoal não podem opor-se a isso, porque a ação que daí resultasse seria ruim (má).
Para lá de qualquer cultura, os homens situam-se em torno de princípios comuns que lhes permitem viver em sociedade.

d)      A igual dignidade de todas as pessoas
O fundamento da igualdade de todas as pessoas encontra-se na encarnação do Filho de Deus (ROSTO supremo de significação) que tomou a forma do ser humano (rosto humano), dando a cada um a mesma dignidade. A dignidade diante de Deus é também a fonte da dignidade perante os homens e garantia do desenvolvimento integral dos povos. De facto, só quando se reconhece a dignidade dos homens, podemos reconhecer a dignidade dos povos e dos outros Estados: e isso leva a um crescimento da comunidade internacional.
A dignidade da pessoa humana também deve ser reconhecida como dignidade igual na dimensão masculina e feminina. O homem e a mulher completam-se não só porque eles são complementares a nível sexual, físico e psicológico, mas também porque os dois estão em relação de unidade do ponto de vista do ser profundo (ontologia). Só quando a dimensão masculina e a feminina se unirem, a humanidade pode desfrutar da riqueza da complementaridade.
Os deficientes são sujeitos, pessoas com a mesma dignidade e deve promover-se, na sociedade, um estilo de acolhimento que seja apropriado para eles. Os deficientes devem ter acesso aos vários serviços e serem admitidos na vida social. Em termos de condições de trabalho, é preciso fazer com que eles possam demonstrar a sua capacidade em diferentes áreas de produção, tentando eliminar possíveis obstáculos quotidianos especialmente os logísticos. Eles também são um Rosto de dignidade. Não esqueçamos que Isaías contempla no Rosto do Messias ultrajado e vilipendiado os traços dum Rosto que é o mais belo porque resgata o povo do mal. Trata-se claramente da beleza do amor que torna o Rosto do Messias sofrido, o Rosto da Luz que salva o seu povo:
·         “Não tinha graça nem beleza, seu aspeto não podia seduzir-nos (v 2);
·         “como aqueles diante dos quais se cobre o rosto (v. 3)
Tanto a pessoa com deficiência, como a que tem boa saúde, precisa de amor, de escuta, de proximidade e de intimidade.

e)      Sociabilidade do homem-Rosto
A pessoa é constitutivamente social. Foi assim que Deus a quis, capaz de construir comunhão com os seus semelhantes.
O homem é uma identidade relacional e isso distingue-o de todas as outras espécies terrestres. Graças ao conhecimento e ao amor, o ser humano é um ser relacional. Ele não pode viver “sozinho”, pois ele realiza-se na sua relação com os outros.
No entanto, a sociabilidade humana também conhece o peso do mal que inclina os homens à sociopatia e ao individualismo. O ser humano deve ultrapassar esse instinto primordial para começar a procurar o bem para si mesmo e para os outros, o bem comum: é nisto que assenta a origem da sociedade, que se articula em volta do bem comum.
Ao considerar o facto de as pessoas, por natureza, viverem em conjunto, a sociabilidade não se reveste de uma única expressão, mas há várias modalidades de “socialização”: as sociedades religiosas, políticas, civis, recreativas, desportivas etc. São outras tantas áreas em que os homens se “socializam” para desenvolverem a sua própria identidade “de comunhão”.
A sociedade deve promover a formação dessas associações com o objectivo da socialização para o desenvolvimento das pessoas e para a participação de um maior número na vida social.

7.           Conclusão

É na presença do Rosto do Outro, no face a face, que sou chamado a responder por Outrem, mas também pelo Próximo, o Terceiro e a própria Humanidade, relação que Lévinas chama de “intriga a três”.
Sou responsável pelo Outro independentemente das minhas escolhas. Minha vontade e liberdade estão pré-originalmente investidas pela responsabilidade, tornando a própria existência justificável, generosa. Ao invés de impor-se pelo poder do conhecimento, a subjetividade impõe-se sob a forma de sujeição, de vocação para o Bem, praticando a obra da justiça e da bondade.
Na relação ao Rosto revela-se a Ética, não como bondade natural ou como intenção generosa (altruísmo). O Outro ensina o primeiro mandamento ético: “Tu não matarás!” Ensino que não é maiêutica, saber ainda não depositado no Eu, onde o Mestre é o Outro, e cuja lição é a “infinitude ética” da alteridade exposta a partir da ideia do infinito.
No encontro como o Rosto anuncia-se um Terceiro. A relação, então, vaza-se num Nós, assinalando o surgimento do próprio Estado. Lévinas esforça-se por mostrar que o fundamento do Estado é a Ética, pois não se funda a partir da mediação do confronto das vontades individuais e antagônicas, à qual um contrato social poderia conciliar.
Responsabilidade e justiça são exigências sociais, indispensáveis à própria constituição do Estado. A Paz do Estado deve ser a Paz ética, fundada a partir destas exigências e não na suspensão das guerras, nos armistícios ou no medo.
A presença do Rosto do Outro me lembra que é preciso tirar as “minhas sandálias”, despojar-me de Mim-Mesmo, oferecer-lhe o pão, a água e, se for preciso, a minha vida. Cabe ao homem salvar o próprio homem. Somos Todos o Messias. A Humanidade é o Messias. Responsabilidade diante de “Tudo” e de “Todos”, justificação de nossa existência.
Eis a sabedoria do pensamento de Emmanuel Lévinas que ilumina uma visão holística da pessoa humana, para uma sociedade e uma igreja mais pacíficas e humanas.









quarta-feira, 24 de maio de 2017

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO PARA O 51º DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS



Tema: «“Não tenhas medo, que Eu estou contigo” (Is 43, 5).
Comunicar esperança e confiança, no nosso tempo»
28 de maio de 2017

Graças ao progresso tecnológico, o acesso aos meios de comunicação possibilita a muitas pessoas ter conhecimento quase instantâneo das notícias e divulgá-las de forma capilar. Estas notícias podem ser boas ou más, verdadeiras ou falsas. Já os nossos antigos pais na fé comparavam a mente humana à mó da azenha que, movida pela água, não se pode parar. Mas o moleiro encarregado da azenha tem possibilidades de decidir se quer moer, nela, trigo ou joio. A mente do homem está sempre em ação e não pode parar de «moer» o que recebe, mas cabe a nós decidir o material que lhe fornecemos (cf. Cassiano o Romano, Carta a Leôncio Igumeno).
Gostaria que esta mensagem pudesse chegar como um encorajamento a todos aqueles que diariamente, seja no âmbito profissional seja nas relações pessoais, «moem» tantas informações para oferecer um pão fragrante e bom a quantos se alimentam dos frutos da sua comunicação. A todos quero exortar a uma comunicação construtiva, que, rejeitando os preconceitos contra o outro, promova uma cultura do encontro por meio da qual se possa aprender a olhar, com convicta confiança, a realidade.
Creio que há necessidade de romper o círculo vicioso da angústia e deter a espiral do medo, resultante do hábito de se fixar a atenção nas «notícias más» (guerras, terrorismo, escândalos e todo o tipo de falimento nas vicissitudes humanas). Não se trata, naturalmente, de promover desinformação onde seja ignorado o drama do sofrimento, nem de cair num otimismo ingénuo que não se deixe tocar pelo escândalo do mal. Antes, pelo contrário, queria que todos procurássemos ultrapassar aquele sentimento de mau-humor e resignação que muitas vezes se apodera de nós, lançando-nos na apatia, gerando medos ou a impressão de não ser possível pôr limites ao mal. Aliás, num sistema comunicador onde vigora a lógica de que uma notícia boa não desperta a atenção, e por conseguinte não é uma notícia, e onde o drama do sofrimento e o mistério do mal facilmente são elevados a espetáculo, podemos ser tentados a anestesiar a consciência ou cair no desespero.
Gostaria, pois, de dar a minha contribuição para a busca dum estilo comunicador aberto e criativo, que não se prontifique a conceder papel de protagonista ao mal, mas procure evidenciar as possíveis soluções, inspirando uma abordagem propositiva e responsável nas pessoas a quem se comunica a notícia. A todos queria convidar a oferecer aos homens e mulheres do nosso tempo relatos permeados pela lógica da «boa notícia».

A boa notícia
A vida do homem não se reduz a uma crónica asséptica de eventos, mas é história, e uma história à espera de ser contada através da escolha duma chave interpretativa capaz de selecionar e reunir os dados mais importantes. Em si mesma, a realidade não tem um significado unívoco. Tudo depende do olhar com que a enxergamos, dos «óculos» que decidimos pôr para a ver: mudando as lentes, também a realidade aparece diversa. Então, qual poderia ser o ponto de partida bom para ler a realidade com os «óculos» certos?
Para nós, cristãos, os óculos adequados para decifrar a realidade só podem ser os da boa notícia: partir da Boa Notícia por excelência, ou seja, o «Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus» (Mc 1, 1). É com estas palavras que o evangelista Marcos começa a sua narração: com o anúncio da «boa notícia», que tem a ver com Jesus; mas, mais do que uma informação sobre Jesus, a boa notícia é o próprio Jesus. Com efeito, ao ler as páginas do Evangelho, descobre-se que o título da obra corresponde ao seu conteúdo e, principalmente, que este conteúdo é a própria pessoa de Jesus.
Esta boa notícia, que é o próprio Jesus, não se diz boa porque nela não se encontra sofrimento, mas porque o próprio sofrimento é vivido num quadro mais amplo, como parte integrante do seu amor ao Pai e à humanidade. Em Cristo, Deus fez-Se solidário com toda a situação humana, revelando-nos que não estamos sozinhos, porque temos um Pai que nunca pode esquecer os seus filhos. «Não tenhas medo, que Eu estou contigo» (Is 43, 5): é a palavra consoladora de um Deus desde sempre envolvido na história do seu povo. No seu Filho amado, esta promessa de Deus – «Eu estou contigo» – assume toda a nossa fraqueza, chegando ao ponto de sofrer a nossa morte. N’Ele, as próprias trevas e a morte tornam-se lugar de comunhão com a Luz e a Vida. Nasce, assim, uma esperança acessível a todos, precisamente no lugar onde a vida conhece a amargura do falimento. Trata-se duma esperança que não dececiona, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações (cf. Rm 5, 5) e faz germinar a vida nova, como a planta cresce da semente caída na terra. Visto sob esta luz, qualquer novo drama que aconteça na história do mundo torna-se cenário possível também duma boa notícia, uma vez que o amor consegue sempre encontrar o caminho da proximidade e suscitar corações capazes de se comover, rostos capazes de não se abater, mãos prontas a construir.

A confiança na semente do Reino
Para introduzir os seus discípulos e as multidões nesta mentalidade evangélica e entregar-lhes os «óculos» adequados para se aproximar da lógica do amor que morre e ressuscita, Jesus recorria às parábolas, nas quais muitas vezes se compara o Reino de Deus com a semente, cuja força vital irrompe precisamente quando morre na terra (cf. Mc 4, 1-34). O recurso a imagens e metáforas para comunicar a força humilde do Reino não é um modo de reduzir a sua importância e urgência, mas a forma misericordiosa que deixa, ao ouvinte, o «espaço» de liberdade para a acolher e aplicar também a si mesmo. Além disso, é o caminho privilegiado para expressar a dignidade imensa do mistério pascal, deixando que sejam as imagens – mais do que os conceitos – a comunicar a beleza paradoxal da vida nova em Cristo, onde as hostilidades e a cruz não anulam, mas realizam a salvação de Deus, onde a fraqueza é mais forte do que qualquer poder humano, onde o falimento pode ser o prelúdio da maior realização de tudo no amor. Na verdade, é precisamente assim que amadurece e se entranha a esperança do Reino de Deus, ou seja, «como um homem que lançou a semente à terra. Quer esteja a dormir, quer se levante, de noite e de dia, a semente germina e cresce» (Mc 4, 26-27).
O Reino de Deus já está no meio de nós, como uma semente escondida a um olhar superficial e cujo crescimento acontece no silêncio. Mas quem tem olhos, tornados limpos pelo Espírito Santo, consegue vê-lo germinar e não se deixa roubar a alegria do Reino por causa do joio sempre presente.

Os horizontes do Espírito
A esperança fundada na boa notícia que é Jesus faz-nos erguer os olhos e impele-nos a contemplá-Lo no quadro litúrgico da Festa da Ascensão. Aparentemente o Senhor afasta-Se de nós, quando na realidade são os horizontes da esperança que se alargam. Pois em Cristo, que eleva a nossa humanidade até ao Céu, cada homem e cada mulher consegue ter «plena liberdade para a entrada no santuário por meio do sangue de Jesus. Ele abriu para nós um caminho novo e vivo através do véu, isto é, da sua humanidade» (Heb 10, 19-20). Através «da força do Espírito Santo»,podemos ser «testemunhas»e comunicadores duma humanidade nova, redimida, «até aos confins da terra»(cf. At 1, 7-8).
A confiança na semente do Reino de Deus e na lógica da Páscoa não pode deixar de moldar também o nosso modo de comunicar. Tal confiança que nos torna capazes de atuar – nas mais variadas formas em que acontece hoje a comunicação – com a persuasão de que é possível enxergar e iluminar a boa notícia presente na realidade de cada história e no rosto de cada pessoa.
Quem, com fé, se deixa guiar pelo Espírito Santo, torna-se capaz de discernir em cada evento o que acontece entre Deus e a humanidade, reconhecendo como Ele mesmo, no cenário dramático deste mundo, esteja compondo a trama duma história de salvação. O fio, com que se tece esta história sagrada, é a esperança, e o seu tecedor só pode ser o Espírito Consolador. A esperança é a mais humilde das virtudes, porque permanece escondida nas pregas da vida, mas é semelhante ao fermento que faz levedar toda a massa. Alimentamo-la lendo sem cessar a Boa Notícia, aquele Evangelho que foi «reimpresso» em tantas edições nas vidas dos Santos, homens e mulheres que se tornaram ícones do amor de Deus. Também hoje é o Espírito que semeia em nós o desejo do Reino, através de muitos «canais» vivos, através das pessoas que se deixam conduzir pela Boa Notícia no meio do drama da história, tornando-se como que faróis na escuridão deste mundo, que iluminam a rota e abrem novas sendas de confiança e esperança.
Vaticano, 24 de janeiro – Memória de São Francisco de Sales – do ano de 2017.
Franciscus