sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

DIÁLOGO, RAZÃO E FÉ NO CONTEXTO DA CELEBRAÇÃO DO ANO DA FÉ



Comunicação para Oração de Sapiência proferida pelo Prof. Dr. Brazão Mazula, por ocasião de abertura do Ano Académico e Formativo do Seminário Filosófico Interdiocesano de Sto. Agostinho da Matola, no dia 11 de Fevereiro de 2013 e na presença de S. Ex.cia Rev.ma D. Francisco Chimoio, Arcebispo de Maputo.




Sumário:
1.      Introdução
2.      Metodologia e estrutura
3.      Contexto da reflexão
4.      A razão como instrumento da ciência
5.      Vejamos, rapidamente, a globalização
6.      Onde está, então, o problema?
7.      Que soluções ou saídas?
8.      Breve conclusão.


1.      Introdução
Recebi um tema difícil. Cada uma das partes, diálogo, razão e , constitui, por si só, um tema bastante para ser reflectido neste Ano da Fé. Poderíamos ter os seguintes títulos: i) Diálogo no Ano da Celebração do Ano da Fé; -- ii) Razão no contexto da celebração da Fé e – iii) a Fé no Ano da Fé. Este terceiro título é tratado mais explicitamente na recente Exortação Apostólica Porta Fidei (2011), de S. Santidade o Papa Bento XVI. A problemática da relação entre a razão e a fé levou o Santo Padre João Paulo II a escrever, nos finais do século XX, a Encíclica Fides et Ratio (1998). Nos dois documentos, os Pontífices mostram não haver nenhuma contradição entre a fé e a razão e incentivam o diálogo racional entre elas. Posto isto, penso que não deveria haver razões para mais outra reflexão senão remeter os caros Seminaristas à leitura. Os dois documentos estão escritos numa linguagem clara e perceptível, se bem que a Fides et Ratio tenha um cunho académico mais acentuado.
Parto do pressuposto de que, não obstante qualquer documento ser bem escrito, ele não esgota a verdade, sobretudo quando se trata do conhecimento de Deus. Deus não se esgota na palavra do homem. São Tomas de Aquino diz-nos que “para chegar a tal conhecimento exige-se uma longa e laboriosa busca, o que é impossível para a maior parte dos homens”, quer por “más disposições”, quer “por afazeres materiais” que retiram às pessoas “o tempo necessário para a busca contemplativa que lhes permitiria atingir o ápice da pesquisa humana, ou seja, o conhecimento de Deus”; quer por “preguiça”, uma vez que “ninguém pode entregar-se à pesquisa da verdade divina sem muito trabalho e diligência”, ou seja, sem “amor à ciência”.[1]
Dirigindo-me mais aos estudantes cuja “reflexão filosófica está orientada para o conhecimento de Deus”, quero recordar-me de São Tomás de Aquino que afirma categoricamente que “toda a reflexão filosófica está orientada para o conhecimento de Deus.”[2] E por quê? Ele entende que o objecto da filosofia é a busca da verdade e Deus é a Verdade em si, Aquele “cuja essência é o seu próprio ser.”[3] Na busca dessa verdade se centra toda a metafísica tomista. O Doutor Angélico reflecte mais detidamente o tema da verdade na Questão XVI das Suma Teológica.
Esta introdução já me sugere a tese desta oração: que a razão e a fé não há contradição de objectivo último, senão a busca da verdade.
Nesta linha de pensamento, justifica-se que Diálogo, Razão e continuem a ser um tema de reflexão filosófica durante todo este vosso ano académico e formativo, que hoje inicia e que coincide com o Ano da Fé, proclamado por S. Santidade o Papa Bento XVI, através da Carta Apostólica Porta Fidei.
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2. Questão de metodologia e estrutura
Por uma questão de método, começarei por situar historicamente o tema, e delimitar o seu âmbito. Deverei, em seguida, precisar o conceito de razão, de modo a poder articulá-lo com a fé. Após uma referência à razão informacional da globalização, tentarei identificar o problema central e apontarei algumas propostas de solução. Conduzirei a minha reflexão recorrendo basicamente aos documentos da doutrina da Igreja, como os do Concílio Vaticano II e os documentos pontifícios mais recentes. Será inevitável uma conclusão final, tendo presente que celebramos o Ano da Fé num país que se chama Moçambique.
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3. Contexto da reflexão
É difícil de precisar a data exacta do início das revoluções, sejam elas políticas como científicas e tecnológicas. Por uma razão simples. Elas não são evolução espontânea. São preparadas com pesquisas acuradas e demoradas e num dado momento explodem os seus resultados. Thomas Kuhn observa que as “investigações posteriores”, que levaram a Roentgen à descoberta dos Raios X, exigiram dele “sete semanas febris, durante os quais (ele) raramente deixou o laboratório.”[4] Mesmo assim, segundo a informação deste físico teórico “podemos somente dizer que os raios X surgiram em Würsburg entre 8 de Novembro e 28 de Dezembro de 1895.”[5]  Em relação à Garrafa de Leyden, resultante da pesquisa no campo da electricidade, ela “surgiu mais lentamente” e “é impossível precisar o momento da descoberta.” Somente se pode afirmar que esse “instrumento (…) surgiu em algum momento das investigações.”[6]
 Geralmente uma descoberta científica traz mudança de paradigma, como nos mostra o mesmo cientista, na sua obra a Estrutura das Revoluções Científicas. Um paradigma científico significa a superação da teoria em voga e a inauguração de uma nova época, cuja duração dependerá de posteriores descobertas científicas. Porém, é importante ressalvar que “nem todas as teorias são teorias paradigmáticas.”[7]
Thomas Kuhn aponta uma outra característica importante duma teoria científica paradigmática. Ela só se torna paradigmática quando é provada a articulação estreita entre a experiência e a teoria e for aceite pela comunidade científica. Isto significa que a comunidade científica reconhece, no plano conceitual e no plano de observação, “a consequente mudança das categorias” de análise da realidade e a consequente mudança dos “procedimentos paradigmáticos.”[8] A partir dessas mudanças e da emergência de um novo paradigma, são construídos novos equipamentos, desenvolvem-se um vocabulário igualmente novo e são refinados os “conceitos que se assemelham cada vez menos com os protótipos habituais do senso comum.”[9]
Uma terceira característica: essa mudança de paradigma é “muitas vezes acompanhada por resistência”[10], inclusive por parte de alguns cientistas. É fácil de perceber essa resistência. A resistência é uma questão psicológica, segundo Freud. Pois a nova teoria derruba as teorias anteriores que não só sustentavam o mercado, como também a sobrevivência intelectual do próprio cientista. Daí que Edgar Morin insiste na abertura do cientista. Este deve aceitar que o que alimenta o desenvolvimento da ciência é a sua capacidade de superação. A ciência não é estática. É, por natureza, dinâmica. Na perspectiva moriniana, a teoria (…) é aberta e regenera-se na sua relação com o mundo exterior, apercebe-se, aceita a biodegradabilidade, isto é, ser rejeitada e condenada à morte.”[11] A história das ciências está rica de exemplos de morte de teorias que, até, vingaram durante séculos.
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4. A razão como instrumento da ciência
O que é que está acontecer hoje? Esse hoje tem uma extensão temporal de pelo menos os últimos cem anos do século XX. Refiro-me a dois acontecimentos que revolucionaram o mundo contemporâneo: o primeiro é o da transferência da inteligência humana para a inteligência artificial e o segundo é o da capacidade científica de concentrar uma grande quantidade de energia em pequena quantidade de massa. O primeiro configura-se no computador, com um disco duro que funciona como cérebro da inteligência artificial e nele armazena tanta informação que se queira, bastando aumentar a sua capacidade em megabites. O segundo se expressa nas novas tecnologias de informação e comunicação. Um exemplo. Em menos de vinte anos, passamos do mercado de grandes disquetes redondos, para pequenos disquetes quadrados que, por sua vez, em pouco tempo, foram ultrapassados por flash relativamente cumpridos e hoje temos flash mais pequenos que o dedo polegar duma pessoa.
Há diferenças entre a revolução do século XVIII e a actual? Há, sim. Aquela foi mais uma revolução industrial, com uma tecnologia muito pesada, enquanto a actual é uma revolução informacional, caracterizada por tecnologias mais leves, mais velozes e muito maleáveis. Na actual revolução informacional e digital tudo se faz para concentrar essa grandeza invisível de bites e megabites em quantidades menores de massas, armazenando grande quantidade de informação, como disse. As novas tecnologias, abreviadamente conhecidas por TICs, inauguraram a era da globalização. É impressionante como essas tecnologias se sofisticam cada vez com mais perfeição. A velocidade e a perfeição caminham juntas. Hoje as mudanças são rápidas e a sua velocidade desafia o próprio que inventou essas tecnologias. Talvez seja esta a características mais marcante dessa revolução digital. Na revolução industrial, o peso, o volume e o tamanho das máquinas fascinavam o homem moderno.
Há poucos meses tomei um táxi na cidade de Nampula. Dentro do táxi ouvia a música, mas vi vazio o espaço reservado para os CDs. Quando perguntei ao jovem taxista, dos seus 20 anos de idade, onde tinha colocado o CD, ele mostrou-me um pequeno suporte do flash no qual gravara músicas para ouvir todo o dia de trabalho. Ele olhou para mim entre o respeito para com o mais velho, que era eu, ao mesmo tempo que, no seu interior, se espantava como esse velho ainda raciocinava em moldes de CDs, aparelho já ultrapassado por flash. Aquele jovem taxista vivia já os efeitos da revolução tecnológica informacional. Tive que me curvar perante o jovem que manejava naturalmente a nova tecnologia de música em flash.
A partir do século XVIII todas as revoluções científicas e tecnológicas foram, do ponto de vista científico, interpretadas como expressão do uso da razão. E daí as invenções não pararam. Os seus resultados fascinaram a muitos homens, inclusive, aos filósofos.
Recordemo-nos de algumas invenções científicas que transformaram a vida dos homens e das sociedades e demonstram, sobretudo, como a razão é o instrumento principal da ciência.
O cientista inglês Isaac Newton (1642-1727), cientista inglês, nos seus 24 e 25 anos de idade, inventou o cálculo integral e é famosa a sua equação F = ma, segundo a qual “a aceleração de um objecto (isto é, a razão de mudança da sua velocidade) é igual à força aplicada no objecto dividida pela massa do próprio objecto”.[12] No meu entender, o mais característico de Charles Darwin (1809-1882) não é o célebre princípio da selecção natural, mas o longo período de pesquisas que o levaram a percorrer o mundo, explorando as ilhas de Galápagos na costa da América do Sul, do lado do Pacífico e navegando também o Oceano Índico e o Atlântico Sul; fez essa longa viagem entre os seus 22 e 27 anos de idade e aquele princípio revolucionou não só a biologia, como também a antropologia, sociologia, ciência política e a própria economia. Com os seus catorze anos de idade, Michael Faraday (1791-1867) lia “intensivamente” textos de obras que desenvolveram nele a curiosidade para a electricidade, e aos trinta anos inventou o primeiro motor eléctrico, o dínamo eléctrico. É esse o homem da descoberta da indução electromagnética. Ao físico James Clerc Maxwell (1831-1879) se deve as suas quatro equações, leis básicas da electricidade e do magnetismo, ainda hoje usadas e com impacto na televisão, nos raios gama, nos raios infravermelhos e ultravioletas e nos Raios X. Aos 27 anos de idade, John Dalton (1766-1844) publicou um livro sobre o comportamento dos gases na atmosfera, derivando daí a lei segundo a qual “o volume ocupado por um gás é proporcional à sua temperatura”, mais tarde enriquecida com a sua lei das pressões parciais. Isto mostra-nos também que a ciência não tem idade limite para invenções. Guglielmo Marconi (1874-1937) inventou um aparelho de comunicação a grandes distâncias sem recurso a fios, aparelho que levou o seu nome “Rádio Marconi” e lhe valeu o Prémio Nobel em 1909. O cientista Alexander Graham Bell (1847-1922), aos 24 anos de idade, inventou o telefone. O físico alemão Max Planck (1858-1947), a quem se deve a teoria quântica e considerado o pai da mecânica quântica, doutorou-se em física aos 21 anos de idade, com a classificação máxima de summa cum laude, pela Universidade de Munique e em 1918 recebeu o Prémio Nobel, já com sessenta anos. Todos conhecemos a estatura científica do matemático e físico suíço, Leonhard Euler (1707-1783). Pela sua inteligência e como diz Michael Hart, pela “sua mente fértil”[13], aos treze anos de idade foi admitido a ingressar na Universidade de Basiléia, Suíça; aos dezassete anos graduou-se como mestre pela mesma universidade; aos vinte anos, foi convidado pela Raínha Catarina I, da Rússia, a entrar na Academia de Ciências de São Petersburgo, para três anos mais tarde, com vinte e três anos, ascender à categoria de professor de física na Universidade daquela cidade e com vinte seis anos sucedia ao grande matemático Daniel Bernoulli, assumindo a cátedra de Matemática. São bem conhecidas as equações de Euler-Lagrange e as fórmulas Euler-Fourier, com grande impacto na matemática, engenharia e na ciência em geral. Um outro cientista já referido anteriormente, Wilhelm Conrad Röntgen (1845-1923), o descobridor dos raios X, fez o seu doutoramento em 1869, aos vinte e quatro de idade, pela Universidade de Zurique.
Sem querer ser exaustivo, não posso não me referir ao grande cientista e génio, Albert Einstein (1879-1955), que se doutorou aos 22 anos pela Universidade de Zurique e aos 26 anos de idade deixou escritos “os cinco artigos, quatro dos quais o tornaram célebre” no campo da física, sobretudo o artigo terceiro, escrito em Junho de 1905 “Sobre a electrodinâmica dos corpos em movimento”, no qual desenvolve a teoria da relatividade. Em 1921 recebeu o Prémio Nobel em Física, pelo seu trabalho sobre o efeito fotoeléctrico. Investigações no campo da neurociência revelam que, apesar da complexidade dos seus artigos e da celebridade da sua inteligência, este génio da física não teria utilizado mais do que 10% do seu potencial de inteligência.[14] Estas pesquisas impulsionaram o desenvolvimento dos povos. Como disse, em princípio uma inovação científica introduz um novo paradigma, utilizando a linguagem de Thomas Kuhn. Um novo paradigma ultrapassa os modelos anteriores de ver o mundo e de fazer o desenvolvimento. Nisto está a riqueza da investigação científica.
Trouxe estes exemplos para mostrar que, na relação razão e fé, as tecnologias não põem em causa a fé em si, nem a fé hostiliza a ciência, pelo contrário precisa dela. O Papa João Paulo II, na sua encíclica Fides et Ratio, considera os cientistas “valorosos pioneiros da investigação científica, a quem a humanidade deve muito do seu progresso social actual” e nisso, o Papa diz que sente “o dever de exortá-los a prosseguir nos seus esforços, permanecendo sempre naquele horizonte sapiencial em que aos resultados científicos e tecnológicos se unem os valores filosóficos e éticos, que são manifestação característica e imprescindível da pessoa humana” (FR., nr. 106. Grifo do autor).
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Tanto a revolução industrial do século XVIII que abriu a época moderna, como a recente revolução informacional e digital do século XX que abriu a sociedade do conhecimento, com as respectivas invenções, não só significam avanço da ciência, mas também elevaram a razão ao patamar mais alto na história da humanidade. João Paulo II diz ainda que o caminho realizado pelos cientistas, especialmente no século XX, atingiu “metas que não cessam de nos maravilhar” (FR., nr. 106). O nível atingido pela ciência criou muitas expectativas e, também, ilusões na humanidade. A expectativa de sair da pobreza e de alcançar o bem-estar. A razão foi tida com o único instrumento válido da emancipação do homem. A modernidade simbolizou a época da emancipação do homem no seu todo. O iluminismo interpretava esse período como das luzes. Pois, a razão é uma luz que ilumina o homem O homem moderno passou a acreditar que com a razão dominava a natureza, tinha o poder sobre ela; tinha um instrumento suficiente para interpretar cientificamente a realidade sem recurso à fé.
Recordemo-nos, por exemplo, de Descartes, Kant e Comte. É expressivo o grito de Kant (1724-1804) quando exorta o homem moderno: “ousa pensar.” Ao pensar por si mesmo, Kant entendia que o homem libertava-se de toda sujeição à interpretação da realidade dada por outros sujeitos, pois com o uso da razão ele tornava-se sujeito capaz de interpretar a realidade por si mesmo e conhecer a verdade; não precisava de recorrer à fé, uma vez que a razão fornecia “os princípios de conhecimento a priori.” Ea razão pura é aquela que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori.”[15] O conteúdo da emancipação era, em Kant, a liberdade de pensar por si mesmo. Como diz Denis Thouard, estudioso de Kant, este filósofo alemão não fez nenhuma “descoberta particular” ou alguma “inovação particular”. O que fez foi introduzir “uma mudança na maneira de ver as coisas.” Essa mudança consiste em “nos desprender da crença espontânea no primado das coisas”; em “compreender que as coisas que acreditamos dadas em primeiro lugar podem ser também constituídas por nós, em outras palavras, perceber a nossa imperceptível colaboração na constituição do mundo objectivo”; que tomando o homem como “sujeito pensante” torna-se ao mesmo tempo “objecto de investigação sobre a possibilidade de um conhecimento geral.” Assim, para Kant a revolução industrial significou, sob o ponto de vista filosófico, “uma revolução na maneira de pensar” [16] o homem, o mundo e a realidade.  
Aproximadamente um século e meio antes, ao definir a razão como “o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso”[17], Descartes (1596-1650) procurava distanciar-se dos critérios da metafísica escolástica e da teologia para conhecimento da verdade. A sua grande preocupação era com um método que permitisse à razão aproximar-se o mais objectivamente possível ao “que se queria conhecer”, excluindo ao máximo possível o erro.[18] Somente utilizando a dúvida metódica como “método unitário” e recorrendo aos critérios objectivos das ciências experimentais se chegava à verdade, podendo ser comprovada cientificamente e expressa em conhecimentos claros e distintos.
Podemos dizer que as Meditações Metafísicas e o Discurso de Método de Descartes prepararam filosoficamente o iluminismo, na medida em que o seu método consistia numa “dúvida universal acerca de tudo.” Decartes sofreu pesadas críticas de Hans Georg-Gadamer. Este filósofo identifica as fraquezas do método cartesiano por não conseguir resolver questões importantes na própria filosofia moderna. Identifica três: a primeira fraqueza é aquela do método cartesiano não ter percebido que a extensão e a autoconsciência não pertencem “à mesma ordem de ser.” A segunda: tanto “o conceito de corpo extenso não basta para pensar a condição viva real”, como “o conceito de espírito autoconsciente não é aplicável ao ser vivo, pois este não possui autoconciência, e assim os animais são, para Descartes, máquinas a lamentar.” A terceira é aquela segundo a qual “o novo conceito de ciência é um conceito de investigação” e, na sua “moral provisória”, Descartes isenta da investigação “a questão da moral da universalidade das pretensões científicas.”[19] De qualquer modo há que reconhecer que aquele grito kantiano era o culminar do pensamento cartesiano sobre a razão, tornando-se quase o lema da modernidade.
O caso extremo do culto à ciência, fundada na razão experimental, é de Auguste Comte (1789-1857). Fascinaram-lhe a Revolução Francesa e o desenvolvimento industrial. No entanto, achava que era necessária uma nova ordem, instaurando o espírito positivo, que implicaria inclusive a “reforma intelectual e social.” Daí a formulação do seu “novo catecismo” como instrumento da nova religião da humanidade em substituição do Deus cristão. Introduziu o conceito de “pensamento positivo” e apresentou o estado positivo como superior aos estados teológico e metafísico. À sua maneira emancipa a razão humana de investigar “as chamadas causas primeiras e finais”, na medida em que a razão humana, com a revolução industrial e economia capitalista, atingira tal nível de maturidade que ela por si só pode empreender “laboriosas investigações científicas, sem ter em vista algum fim estranho, capaz de agir fortemente sobre a imaginação, como aquele que se propunham os astrólogos e os alquimistas.” Perante o avanço da ciência, diz ainda Comte, “a nossa actividade intelectual estimula-se suficientemente com a pura esperança de descobrir as leis dos fenómenos, com o simples desejo de confirmar ou informar uma teoria.”[20] Comte fascina-se pelas ditas “ciências positivas” e afirma que “somente (…) o ensino das ciências pode constituir para nós a base duma nova educação geral verdadeiramente racional.”[21] Onde fica o papel da fé? Não era sua preocupação. Reclamava, sim, a emancipação da ciência, situando-a muito distante da fé em Deus.
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5. Vejamos, rapidamente, a globalização.
Vou recorrer a dois autores portugueses, António Flávio Moreira e José Augusto Pacheco, ambos docentes universitários e organizadores de uma colectânea de artigos sobre a globalização e educação, incidindo nos desafios para políticas e práticas.[22]
De acordo com esses docentes, “a palavra globalização tornou-se tão obsessiva que ‹como todas as palavras que entram em voga em determinada altura, é inevitável e simultaneamente insuportável›.” Os mesmos autores reconhecem que “a globalização é uma questão difícil de contornar sempre que pretendemos caracterizar as sociedades contemporâneas.” [23] Destacarei com eles algumas características desse fenómeno. Tomo a palavra fenómeno no sentido etimológico de φαινόμενον, do verbo grego φαίνομαι, que significa aparecer. Portanto, fenómeno como aquilo que aparece, se manifesta.
O Prémio Nobel de Economia Joseph Stiglitz e o sociólogo Boaventura de Souza Santos reconhecem que a globalização é um fenómeno essencialmente económico e financeiro, com dimensões social, política e cultural.[24]
Diferentemente da maneira como a revolução industrial se expandiu e chegou até a África à busca de matéria-prima e, sobretudo, da mão-de-obra barata e escrava, a revolução informacional contemporânea expande-se à velocidade de um forte “vendaval globalizador”.[25] Esse vendaval “assola o planeta”[26], ao ritmo de um autêntico sunami de informações, com os seus efeitos positivos e negativos. Um dos efeitos é que permite diversificar e aprofundar as “relações de (inter)dependência entre regiões e povos.” Outro efeito é “a crescente perda de protagonismo do Estado nacional”, reduzindo-lhe o poder e a soberania. Assistimos, hoje, quase todos os dias a essa perda de poder dos Estados, como evidencia a actual crise financeira mundial. Os Estados não conseguem impor-se junto das decisões do FMI que representa os interesses de grandes conglomerados financeiros mundiais (aqueles que realmente mandam, não se importando com a pobreza dos povos) e funciona como o real Estado Global. Esses conglomerados financeiros evitam aparecer publicamente, usam o FMI que, por sua vez, cria as famosas troikas com a missão de tudo fazer para fazer valer as suas medidas impopulares e garantir os seus lucros. As troikas são assim a face visível da invisibilidade daqueles conglomerados. Assim, ao rotular as sociedades ocidentais como sociedades de conhecimento, ou seja, de informação, a globalização torna-as ao mesmo tempo em “sociedades de risco.” Criou uma “obsessão pela eficácia e pela rentabilidade financeira a curto prazo” como “critérios exclusivos de referência e de medida daquilo que é bom, útil e necessário.” Como resultado, conquista-se o mercado, perde-se a sociedade, e enfraquecem-se “os princípios fundadores das sociedades modernas”, que são “a cidadania, a solidariedade e o bem comum”; conta apenas a lógica de mercado[27]. Quando se esperava uma maior solidariedade humana, com a globalização notamos o recrudescimento de um individualismo económico e financeiro, exacerbado pela corrupção.
A globalização das novas tecnologias lançou a ideia de aldeia global, criando uma grande expectativa de vida melhor. O pressuposto que é alimentado é que, tornando o mundo em aldeia global, a globalização facilitaria a toda a gente o acesso aos seus benefícios de ordem económica, social, cultural, mas com reserva aos benefícios financeiros. Essa vida melhor não se realizou, assim como não se concretizou a promessa do iluminismo de um futuro melhor. Hoje, não são apenas indivíduos que ficam pobres, mas nações inteiras são induzidas à pobreza dos seus povos, sobretudo com crescimento galopante do desemprego. A globalização funciona sob o comando da razão informacional das novas tecnologias de informação e comunicação. O expoente da razão informacional é o especialista. “O especialista é aquele que domina as novas tecnologias de informação e comunicação e, a partir da sua perícia técnica, procura impor-se a vários níveis da sociedade com a sua vara tecnológico-messiânica, convencendo, por meio de marketing, que a solução dos problemas da sociedade está nessas tecnologias. Os especialistas idolatrizam-se e idolatrizam a sua especialidade como se ela fosse em si; tornam-se os demiurgos contemporâneos.[28] Se a revolução industrial do século XVIII provocou uma revolução na maneira de pensar, usando a expressão de Kant, a revolução informacional das novas tecnologias provoca uma mudança na maneira de pensar a realidade social, impõe uma mudança na maneira de agir e até nas formas de sentir, pondo em causa os valores ditos tradicionais de viver a fé, e agravou a pobreza dos povos, tristemente aproveitada pelas recentes religiões da teologia da prosperidade. A globalização procura, de certa maneira, abalar os fundamentos da fé.  Agora podemos entender a preocupação da Igreja.
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6. Onde está, então, o problema?
Especificando melhor: quais são as principais preocupações da Igreja na relação fé e razão, mais extensivamente, entre a ciência, a técnica e a fé? E que soluções se propõe para essas preocupações?
Podemos encontrar essas preocupações e respectivas soluções nos documentos da própria Igreja.
Tanto o Concílio Vaticano II como os documentos pontifícios reconhecem o papel da ciência e os avanços alcançados pelo homem. Já em 1965, a Gaudium et Spes (a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo) reconhecia as “mudanças profundas e rápidas (…) provocadas pela inteligência e pela actividade criadora do homem.” Na altura o Concílio Vaticano II entendia que essas mudanças se estendiam “gradualmente ao mundo inteiro.”[29] Hoje, temos de reconhecer que, com o avanço das tecnologias, essas mudanças estendem-se ao mundo inteiro a um ritmo acelerado, ou seja, a uma velocidade estonteante dum “vendaval globalizador”. Em segundo lugar, a Gaudium et Spes reconhece igualmente que essas mudanças “reflectem-se no próprio homem, nos seus juízos, nos seus desejos individuais e colectivos, no seu modo de pensar e de agir, tanto em relação às coisas como aos outros homens.” Nessa altura o Concílio Vaticano II não falava de globalização, mas, sim, fala de “uma verdadeira metamorfose social e cultural, cujos efeitos se repercutem até na vida religiosa.” Em 1998 o Papa João Paulo II refere-se às “vastas transformações geopolíticas, verificadas depois de 1989” e fala já, dentre várias revoluções, a da “globalização da economia e da alta finança” como “uma realidade.” Reconhece, porém, que é possível tirar “proveito dos rápidos progressos nas tecnologias informáticas.” No entanto ele adverte, na sua Mensagem do Dia Mundial da Paz 1998, que, nesta era da globalização, o desafio consiste em “assegurar uma globalização na solidariedade, uma globalização sem marginalização.” Termina o parágrafo dizendo que é “um dever de justiça, que comporta notáveis implicações morais na organização da vida económica, social, cultural e política das nações.”[30] Bento XVI diz, na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Africae Munus, que a globalização é “um desafio a enfrentar”, empenhando-se “sem cessar por favorecer uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração mundial.”[31] Na Inter Mirifica (Decreto sobre os Meios de Comunicação Social), o Concílio Vaticano II começa por acolher aqueles “maravilhosos inventos da técnica”, como a Imprensa, o Cinema, a Rádio, a Televisão e outros”, que “abriram novos caminhos para comunicar facilmente notícias, ideias e ordens.” Prossegue dizendo que “a Santa Igreja reconhece que estes instrumentos, rectamente utilizados, prestam ajuda valiosa ao género humano, posto que contribuem eficazmente para unir e cultivar os espíritos, propagar e afirmar o reino de Deus.”[32]
O problema está naquilo que João Paulo II resume na sua Carta Encíclica Fides et Ratio: conseguir em todas essas mudanças a “razão recta” (= orthos logos, recta ratio). Esse é o desafio das escolas filosóficas: que a razão consiga “intuir e formular os princípios primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentemente conclusões de ordem lógica e deontológica.” Diz ainda o Papa que a Igreja aprecia “o esforço da razão na consecução de objectivos que tornem cada vez mais digna a existência pessoal.” No entanto, “ela vê, na filosofia, o caminho para conhecer verdades fundamentais relativas à existência do homem” e, ao mesmo tempo considera a filosofia uma “ajuda indispensável para aprofundar a compreensão da fé e comunicar a verdade do Evangelho a quantos ainda a não conhecem.”[33]
O Papa João Paulo II concretiza melhor as preocupações da Igreja. Transcrevo na íntegra as suas palavras:
“(…) na errada convicção de que tudo deve ser dominado pela técnica, (…) a razão, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para a verdade, se curvou sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação no conhecimento humano. Em vez de se apoiar na capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos.”[34]
Na mesma encíclica Fides et Ratio, o Papa enuncia várias correntes de pensamento que constituíram e continuam a constituir a preocupação da Igreja. Daí, a atenção especial que dedica à filosofia. Refere-se ao agnosticismo (expressão da “desconfiança geral e céptica” da dimensão racional da fé (FR., nr.45); ao relativismo e cepticismo (nr. 5, p. 11); à “crítica racionalista que se fazia sentir contra a fé” aquando do Concílio Vaticano I e negava “qualquer conhecimento que não fosse fruto das capacidades naturais da razão” (FR, nr. 8); à “mentalidade imanentista e aos reducionismos duma lógica tecnocrática” (FR., nr. 15); às filosofias do absurdo que duvidam do sentido da vida (FR, nr. 26); às “diversas formas de esoterismo que hoje se difundem mesmo entre alguns crentes, privados do necessário sentido crítico!” (FR, nr. 37). Constata com tristeza e lamenta como ao longo da história, sobretudo a partir da baixa Idade Média, foram surgindo correntes filosóficas que se especializaram na separação da fé da razão, com destaque para o “pensamento filosófico moderno” que se desenvolveu “num progressivo afastamento da revelação cristã, até chegar explicitamente à contraposição” (FR., nr. 46). São exemplos: o idealismo e ‘as suas diversas formas do humanismo ateu, elaboradas filosoficamente, (…) apontam a fé como prejudicial e alienante para o desenvolvimento pleno do uso da razão”; “sistemas totalitários traumáticos para a humanidade”[35]; a mentalidade positivista que se afastou de toda a visão cristã do mundo, não fazendo nenhuma “alusão à visão metafísica e moral”; o niilismo, esta “filosofia do nada” que surge “na sequência da crise do racionalismo” e para o qual “tudo é fugaz e provisório”. Finalmente o Papa João Paulo II constata na cultura moderna uma “progressiva separação entre a fé e a razão filosófica.” (FR., nrs. 36-48, 90).
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7. Que soluções ou saídas?
João Paulo II denuncia algumas correntes de pensamento que não são soluções desse drama da separação da fé da razão, até porque elas escondem perigos, que, infelizmente, segundo suas palavras, influenciam alguns teólogos (FR., nr. 86). Refere-se: i) ao ecletismo, que “costuma assumir ideias tomadas isoladamente de distintas filosofias, sem se preocupar com a sua coerência e vinculação sistemática, nem com o seu contexto histórico” (FR., nr. 86) e, como comenta o Padre Manfredo Araújo de Oliveira, “sem levantar a questão de sua validade”[36]; -- ii) ao historicismo, que faz consistir a verdade na “sua adequação a um determinado período e função histórica”, negando, “implicitamente a validade perene da verdade”; -- iii) ao modernismo, esta outra forma do historicismo, que troca “a actualidade pela verdade”, pois limita-se ao “uso das afirmações e termos filosóficos mais recentes, descurando exigências críticas que, à luz da tradição, se deveriam eventualmente colocar.” (FR., nr 87). – iv) Em quarto lugar, o Papa refere-se ao cientificismo, cujas ideias não diferem muito do positivismo e do neopositivismo; ele é uma concepção filosófica que “recusa a admitir como válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências positivas” e reduz todo o conhecimento religioso e teológico, o saber ético e estético à “pura imaginação”; remete para o domínio do irracional ou da fantasia “tudo o que se refere à questão de sentido da vida”. Para o cientificismo, “aquilo que se pode realizar tecnicamente, torna-se, por isso mesmo, também moralmente admissível” (FR., 88). – v) Diz também que não é solução o pragmatismo, que é uma “atitude mental própria de quem, ao fazer as suas opções, exclui o recurso a reflexões abstractas ou a avaliações fundadas sobre princípios éticos.” Para o Papa essa atitude passa por uma certa concepção de democracia que se afasta dos “fundamentos de ordem axiológica” (FR., 89). Insurge-se contra o pragmatismo dogmático, com o seu reducionismo, (…), segundo o qual as verdades da fé nada mais seriam do que regras de comportamento” (FR., 97).
Para João Paulo II a melhor solução para a “razão recta” (FR., nr. 4), termo com que iniciou a encíclica, é o diálogo. O Papa justifica-se com a história da própria Igreja. Começa por afirmar que “os pais da filosofia tiveram por missão mostrar a ligação entre a razão e a religião”; não se contentando com “os mitos antigos, procuraram dar fundamento racional à sua crença divindade. (…) Foi nesta base que os Padres da Igreja instituíram um diálogo fecundo com os filósofos antigos, abrindo o caminho ao anúncio e à compreensão do Deus de Jesus Cristo.” (FR., nr. 36). Dá exemplo de S. Paulo que teve discussões “com alguns filósofos epicuristas e estóicos”, como consta dos Actos dos Apóstolos (Act. 2,18). Dá outros exemplos de S. Justino, Clemente de Alexandria (que “chamava ao Evangelho «a verdadeira filosofia»”) (FR., nr. 38). Mas encontra, sobretudo, em Santo Agostinho (FR., nrs. 40-42) e S. Tomás de Aquino (FR., nrs. 43-44) exemplos fecundos de dois Padres da Igreja que se debruçaram sobre a relação entre a razão e fé, entre a ciência e a religião cristã, entre a filosofia e a teologia, e demonstraram a existência de uma “harmonia fundamental entre o conhecimento filosófico e o conhecimento da fé” (FR., nr. 42), ou seja, de “harmonia que existe entre a razão e a fé”(FR., nr. 43). Faz recordar a afirmação de S. Tomás de Aquino na Suma contra os Gentios de que “a fé não teme a razão, mas solicita-a e confia nela; como a graça supõe a natureza e a leva à perfeição, assim também a fé supõe e aperfeiçoa a razão” (FR., nr 43). Nas suas investigações S. Tomás de Aquino demonstra, inclusive, que a filosofia e a sabedoria teológica são duas formas complementares de sabedoria (FR., nr. 44). O Papa conclui dizendo que a “fé e a razão «se ajudam mutuamente», exercendo, uma em prol da outra, a função tanto de discernimento crítico e purificador, como de estímulo para progredir na investigação e no aprofundamento.” (FR., 100).  
Pelo tom que o Papa dá ao tema da encíclica, eu diria que ela é mais uma encíclica de filosofia no mundo contemporâneo. Reparemos que João Paulo II preparava o novo milénio. O Papa dá um grande destaque à filosofia e à sua importância para o homem contemporâneo. Isto porque: a filosofia é “sabedoria prática e escola da vida”(FR., 37); “a filosofia é como que o espelho onde se reflecte a cultura dos povos” (FR., 103) e porque “o pensamento filosófico é, frequentemente, o único terreno comum de entendimento e diálogo com quem não partilha a nossa fé (FR., nr 104).
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8. Breve conclusão
Não pretendi esgotar o tempo. E não é possível. É muito difícil tirar conclusões num tema que, por sua natureza, não se esgota. Quis apenas, dentro das reflexões conciliares e pontifícias, retomar o tema recorrente na Igreja sobre a relação entre a fé e a razão. Todos os documentos mostram que não só não há contradição entre a fé e a razão, como as duas se complementam. Nisto joga papel importante a filosofia no aprofundamento dessa relação. O Santo Padre o Papa João Paulo II apela aos filósofos para que saibam “aprofundar aquelas dimensões de verdade, bem e beleza, à quais dá acesso a palavra de Deus”. Desenvolvendo-se “de harmonia com a fé” e aceitando “o estímulo das exigências teológicas, a filosofia faz parte daquela «evangelização da cultura»”, referida pelo Papa Paulo VI na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (nr. 20)[37]. João Paulo II exige filósofos crentes e competentes (FR., nr. 104).  Pois só assim será possível neste ano da fé os filósofos, na articulação com o Bispo do lugar, “intensificar a reflexão sobre a fé, (…) ajudar (…) os crentes em Cristo a tornarem mais consciente e revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo num momento de profunda mudança como este que a humanidade está a viver” – diz Bento XVI.[38] No dia-a-dia sentimos como o vendaval da globalização abala as consciências religiosas, sobretudo a fé em Cristo e na Igreja. Sentimos como adultos e, sobretudo, jovens são hipnotizados pelos fenómenos da globalização e inebriados pelas pirotecnias de milagres com promessas de melhoria da vida.
Ao enfatizar o diálogo que sempre caracterizou a Igreja na relação entre a fé e a razão, João Paulo II está a dizer aos filósofos que eles têm de ser homens e peritos do diálogo entre a fé e a razão. Trata-se de diálogo alicerçado em argumentos racionais e fortificado pelo Espírito Santo. Imprime na filosofia a racionalidade dialógica como capacidade de escuta e fala com o outro. Ou seja, a filosofia ajuda a desenvolver a competência comunicativa, referida por Jürgen Habermas.[39] Nisso, e lembrando Bento XVI na Porta Fidei, assim como “a Igreja nunca teve medo de mostrar não haver qualquer conflito entre fé e ciência autêntica, porque ambas tendem, embora por caminhos diferentes, para a verdade” (PF., nr. 12), um filósofo crente e competente também não deve ter medo de manifestar a sua fé tanto em privado como em público. Donde Bento XVI insistir na profissão da fé do Credo como ensina o Catecismo da Igreja Católica (PF., nr 10).
Num país como o nosso, acho importante a filosofia, na medida em que pode ajudar a política a enfrentar racionalmente “os problemas mais urgentes da humanidade, como por exemplo o problema ecológico, o problema da paz ou da convivência das raças e culturas” (FR., 104), a saber dialogar com o mercado para que este beneficie sempre e em primeiro lugar o povo moçambicano, tirando-o da pobreza; consolidar a paz. Não é tarefa fácil, por isso o Papa João Paulo II exige fé e competência.

Caros Seminaristas:
Concluo esta modesta intervenção com o pensamento de João Paulo II, i) estudar filosofia é um “esforço duma paciente investigação sobre aquilo que merece ser vivido; -- ii) “a filosofia, que tem a grande responsabilidade de formar o pensamento e a cultura através do apelo perene à busca da verdade, deve recuperar vigorosamente a sua vocação originária” (FR., 6); -- iii) sejais filósofos crentes cristãos e competentes.  
Gostaria de terminar, agradecendo pelo convite que me foi feito pelo Sr. Reitor, de participar nessa cerimónia de abertura do Ano Académico do Seminário Filosófico de Santo Agostinho e na presença de S. Ex.cia Rev.ma D. Francisco Chimoio, Arcebispo de Maputo e do ilustre Corpo Docente.
A Todos, Muito obrigado pela atenção dispensada!


[1] DE AQUINO, Sto. Tomás. “Súmula Contra os Gentios.”. In: DE AQUINO, Sto. Tomás et alii. Seleção de Textos. São Paulo, Abril Cultural e Industrial, 1973, p. 66-67.
[2] Idem, p. 67.
[3] DE AQUINO, São Tomás. O Ente e a Essência. Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa, Instituto Piaget, 200, p. 75.
[4] KUHN, Thomas  S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 3. Ed. São Paulo, Perspectiva, 1994, p. 83.
[5] Idem, p. 84.
[6] Idem, p. 88.
[7] Idem, p. 87.
[8] Idem, p. 89.
[9] Idem, p. 91.
[10] Idem, p. 89 e 91. 
[11] MORIN, Edgar. O Problema Epistemológico da Complexidade. Mira-Sintra – Mem- Martins, Publicações Europa-América, s.d., p. 30.
[12] HART, 2002: 57.
[13]HART,2002: 168-169.
[14] Cfr. MAZULA, 2006.
[15] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosbuerger. 3. Ed. São Paulo, Nova Cultural, 1987, p. 34.
[16] THOUARD, Denis. Kant. Trad. Tessa Moura Lacerda.  São Paulo, Estação Liberdade, 2004, p. 44-46.  Grifos do autor.
[17] DESCARTES, René. Discurso do Método & As Paixões da Alma. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 4. Ed. São Paulo, Nova Cultural, 1987, p. 29.
[18] GADAMER, Hans-Georg. Elogio da Teoria. Trad. João Tiago Proença. Lisboa, Edições 70, 2001, p. 74.
[19] GADAMER, Op. cit.,  p. 75.
[20] COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva e outros textos. Trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 6-7.
[21] COMTE, Op. Cit., p. 16.
[22] MOREIRA, António Flávio & PACHECO, José Augusto. Globalização e Educação: Desafios para políticas e práticas. Porto, Porto Editora, 2006.
[23] MOREIRA, 2006: 63-64.
[24] C fr. STIGLITZ, Joseph E. i) Globalização: A grande desilusão. Trad. Maria Filomena Duarte. Lisnoa, Terramar, 2002. – ii) ____.   Tornar Eficaz a Globalização. Trad. Luísa Venturini.  Lisboa, ASA, 2007.  – SANTOS, Boaventura de Souza. Globalização: Fatalidade ou Utopia? Porto, Edições Afrontamento, 2002.
[25] MOREIRA, Op. cit., p. 62.
[26] Ibidem.
[27] MOREIRA, Op. cit., p. 62-66.
[28] Cfr. MAZULA, Brazão. Na Esteira da Academia: Razão, Democracia e Educação. Maputo, Texto Editores, 2008, p. 34.
[29] GAUDIUM ET SPES, nr. 4.
[30] JOÃO PAULO II. Da Justiça de Cada um Nasce a Paz para Todos. Mensagem para a Celebração do Dia Mundial da Paz – 1º de Janeiro de 1998. Cidade do Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 1997, nr. 3. Grifos do autor.
[31] BENTO XVI. O Compromisso da África  - Africae Munus. Exortação Apostólica Pós Sinodal sobre a Igreja na África ao Serviço da Reconciliação, da Justiça e da Paz. Prior Velho, Filhas de São Paulo, 2011, nr. 86, p. 68.
[32] INTER  MIRIFICA, nr. 1 e 2. Grifos nossos.
[33] JOÃO PAULO II. A Fé a Razão (“Fides et Ratio”). Carta encíclica sobre as relações entre a Fé a Razão. 2. Ed. Lisboa, Filhas de São Paulo, 1998, nr. 4 e 5, p. 10.
[34] Idem, nr. 5.
[35] Reco
mendo também a leitura “As Origens do Totalitarismo” de Hannah Arendt.
[36] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Diálogos entre razão e fé. São Paulo, Paulinas, 2000, p. 34.
[37] PAULO VI. Evangelii Nuntiandi. Exortação Apostólica sobre a Evangelização no Mundo Contemporâneo. São Paulo, Paulinas, 1976.
[38] BENTO XVI. A Porta da Fé – Porta Fidei. Carta Apostólica pela qual proclama o Ano da Fé. 7. Ed. Prior Velho, Filhas de São Paulo, 2012, nr. 8.
[39] HABERMAS, Jürgen. Racionalidade e Comunicação. Trad. Paulo Rodrigues. Lisboa, Edições 70, 2002.

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