Comunicação para Oração de Sapiência proferida pelo Prof. Dr. Brazão Mazula, por ocasião de
abertura do Ano Académico e Formativo do Seminário Filosófico Interdiocesano de
Sto. Agostinho da Matola, no dia 11 de Fevereiro de 2013 e na presença de S.
Ex.cia Rev.ma D. Francisco Chimoio, Arcebispo de Maputo.
Sumário:
1. Introdução
2. Metodologia e estrutura
3. Contexto da reflexão
4. A razão como instrumento da ciência
5. Vejamos, rapidamente, a globalização
6. Onde está, então, o problema?
7. Que soluções ou saídas?
8. Breve conclusão.
1.
Introdução
Recebi
um tema difícil. Cada uma das partes, diálogo,
razão e fé, constitui, por si só, um tema bastante para ser reflectido neste
Ano da Fé. Poderíamos ter os seguintes títulos: i) Diálogo no Ano da Celebração
do Ano da Fé; -- ii) Razão no contexto da celebração da Fé e – iii) a Fé no Ano
da Fé. Este terceiro título é tratado mais explicitamente na recente Exortação Apostólica
Porta Fidei (2011), de S. Santidade o
Papa Bento XVI. A problemática da relação entre a razão e a fé levou o Santo
Padre João Paulo II a escrever, nos finais do século XX, a Encíclica Fides et Ratio (1998). Nos dois
documentos, os Pontífices mostram não haver nenhuma contradição entre a fé e a
razão e incentivam o diálogo racional entre elas. Posto isto, penso que não deveria
haver razões para mais outra reflexão senão remeter os caros Seminaristas à
leitura. Os dois documentos estão escritos numa linguagem clara e perceptível,
se bem que a Fides et Ratio tenha um
cunho académico mais acentuado.
Parto
do pressuposto de que, não obstante qualquer documento ser bem escrito, ele não
esgota a verdade, sobretudo quando se trata do conhecimento de Deus. Deus não
se esgota na palavra do homem. São Tomas de Aquino diz-nos que “para chegar a
tal conhecimento exige-se uma longa e laboriosa busca, o que é impossível para
a maior parte dos homens”, quer por “más disposições”, quer “por afazeres
materiais” que retiram às pessoas “o tempo necessário para a busca
contemplativa que lhes permitiria atingir o ápice da pesquisa humana, ou seja,
o conhecimento de Deus”; quer por “preguiça”, uma vez que “ninguém pode
entregar-se à pesquisa da verdade divina sem muito trabalho e diligência”, ou
seja, sem “amor à ciência”.[1]
Dirigindo-me
mais aos estudantes cuja “reflexão filosófica está orientada para o
conhecimento de Deus”, quero recordar-me de São Tomás de Aquino que afirma
categoricamente que “toda a reflexão filosófica está orientada para o
conhecimento de Deus.”[2]
E por quê? Ele entende que o objecto da filosofia é a busca da verdade e Deus é
a Verdade em si, Aquele “cuja essência é o seu próprio ser.”[3]
Na busca dessa verdade se centra toda a metafísica tomista. O Doutor Angélico reflecte
mais detidamente o tema da verdade na
Questão XVI das Suma Teológica.
Esta
introdução já me sugere a tese desta oração: que a razão e a fé não há
contradição de objectivo último, senão a busca da verdade.
Nesta
linha de pensamento, justifica-se que Diálogo,
Razão e Fé continuem a ser um tema de reflexão filosófica durante todo este
vosso ano académico e formativo, que hoje inicia e que coincide com o Ano da
Fé, proclamado por S. Santidade o Papa Bento XVI, através da Carta Apostólica Porta Fidei.
*
* *
2. Questão de
metodologia e estrutura
Por
uma questão de método, começarei por situar historicamente o tema, e delimitar
o seu âmbito. Deverei, em seguida, precisar o conceito de razão, de modo a
poder articulá-lo com a fé. Após uma referência à razão informacional da
globalização, tentarei identificar o problema central e apontarei algumas
propostas de solução. Conduzirei a minha reflexão recorrendo basicamente aos
documentos da doutrina da Igreja, como os do Concílio Vaticano II e os
documentos pontifícios mais recentes. Será inevitável uma conclusão final,
tendo presente que celebramos o Ano da Fé num país que se chama Moçambique.
*
* *
3. Contexto da
reflexão
É
difícil de precisar a data exacta do início das revoluções, sejam elas
políticas como científicas e tecnológicas. Por uma razão simples. Elas não são
evolução espontânea. São preparadas com pesquisas acuradas e demoradas e num
dado momento explodem os seus resultados. Thomas Kuhn observa que as “investigações
posteriores”, que levaram a Roentgen à descoberta dos Raios X, exigiram dele
“sete semanas febris, durante os quais (ele) raramente deixou o laboratório.”[4]
Mesmo assim, segundo a informação deste físico teórico “podemos somente dizer
que os raios X surgiram em Würsburg entre 8 de Novembro e 28 de Dezembro de
1895.”[5]
Em relação à Garrafa de Leyden, resultante
da pesquisa no campo da electricidade, ela “surgiu mais lentamente” e “é
impossível precisar o momento da descoberta.” Somente se pode afirmar que esse
“instrumento (…) surgiu em algum momento das investigações.”[6]
Geralmente uma descoberta científica traz mudança
de paradigma, como nos mostra o mesmo cientista, na sua obra a Estrutura das Revoluções Científicas. Um paradigma científico significa a superação
da teoria em voga e a inauguração de uma nova época, cuja duração dependerá de posteriores
descobertas científicas. Porém, é importante ressalvar que “nem todas as
teorias são teorias paradigmáticas.”[7]
Thomas
Kuhn aponta uma outra característica importante duma teoria científica
paradigmática. Ela só se torna paradigmática quando é provada a articulação
estreita entre a experiência e a teoria e for aceite pela comunidade
científica. Isto significa que a comunidade científica reconhece, no plano
conceitual e no plano de observação, “a consequente mudança das categorias” de
análise da realidade e a consequente mudança dos “procedimentos
paradigmáticos.”[8] A partir
dessas mudanças e da emergência de um novo paradigma, são construídos novos
equipamentos, desenvolvem-se um vocabulário igualmente novo e são refinados os
“conceitos que se assemelham cada vez menos com os protótipos habituais do
senso comum.”[9]
Uma
terceira característica: essa mudança de paradigma é “muitas vezes acompanhada
por resistência”[10],
inclusive por parte de alguns cientistas. É fácil de perceber essa resistência.
A resistência é uma questão psicológica, segundo Freud. Pois a nova teoria
derruba as teorias anteriores que não só sustentavam o mercado, como também a sobrevivência
intelectual do próprio cientista. Daí que Edgar Morin insiste na abertura do cientista.
Este deve aceitar que o que alimenta o desenvolvimento da ciência é a sua
capacidade de superação. A ciência não é estática. É, por natureza, dinâmica. Na
perspectiva moriniana, a teoria (…) é aberta e regenera-se na sua relação com o
mundo exterior, apercebe-se, aceita a biodegradabilidade, isto é, ser rejeitada
e condenada à morte.”[11]
A história das ciências está rica de exemplos de morte de teorias que, até,
vingaram durante séculos.
*
* *
4. A razão como
instrumento da ciência
O
que é que está acontecer hoje? Esse hoje tem uma extensão temporal de pelo
menos os últimos cem anos do século XX. Refiro-me a dois acontecimentos que
revolucionaram o mundo contemporâneo: o
primeiro é o da transferência da inteligência humana para a inteligência
artificial e o segundo é o da
capacidade científica de concentrar uma grande quantidade de energia em pequena
quantidade de massa. O primeiro configura-se no computador, com um disco duro
que funciona como cérebro da inteligência artificial e nele armazena tanta
informação que se queira, bastando aumentar a sua capacidade em megabites. O
segundo se expressa nas novas tecnologias de informação e comunicação. Um
exemplo. Em menos de vinte anos, passamos do mercado de grandes disquetes
redondos, para pequenos disquetes quadrados que, por sua vez, em pouco tempo,
foram ultrapassados por flash relativamente cumpridos e hoje temos flash mais pequenos
que o dedo polegar duma pessoa.
Há
diferenças entre a revolução do século XVIII e a actual? Há, sim. Aquela foi
mais uma revolução industrial, com uma tecnologia muito pesada, enquanto a
actual é uma revolução informacional, caracterizada por tecnologias mais leves,
mais velozes e muito maleáveis. Na actual revolução informacional e digital tudo
se faz para concentrar essa grandeza invisível de bites e megabites em quantidades
menores de massas, armazenando grande quantidade de informação, como disse. As
novas tecnologias, abreviadamente conhecidas por TICs, inauguraram a era da
globalização. É impressionante como essas tecnologias se sofisticam cada vez
com mais perfeição. A velocidade e a perfeição caminham juntas. Hoje as
mudanças são rápidas e a sua velocidade desafia o próprio que inventou essas
tecnologias. Talvez seja esta a características mais marcante dessa revolução
digital. Na revolução industrial, o peso, o volume e o tamanho das máquinas
fascinavam o homem moderno.
Há
poucos meses tomei um táxi na cidade de Nampula. Dentro do táxi ouvia a música,
mas vi vazio o espaço reservado para os CDs. Quando perguntei ao jovem taxista,
dos seus 20 anos de idade, onde tinha colocado o CD, ele mostrou-me um pequeno
suporte do flash no qual gravara músicas para ouvir todo o dia de trabalho. Ele
olhou para mim entre o respeito para com o mais velho, que era eu, ao mesmo
tempo que, no seu interior, se espantava como esse velho ainda raciocinava em
moldes de CDs, aparelho já ultrapassado por flash. Aquele jovem taxista vivia
já os efeitos da revolução tecnológica informacional. Tive que me curvar
perante o jovem que manejava naturalmente a nova tecnologia de música em flash.
A
partir do século XVIII todas as revoluções científicas e tecnológicas foram, do
ponto de vista científico, interpretadas como expressão do uso da razão. E daí
as invenções não pararam. Os seus resultados fascinaram a muitos homens,
inclusive, aos filósofos.
Recordemo-nos
de algumas invenções científicas que transformaram a vida dos homens e das
sociedades e demonstram, sobretudo, como a razão é o instrumento principal da
ciência.
O
cientista inglês Isaac Newton (1642-1727), cientista inglês, nos seus 24 e 25
anos de idade, inventou o cálculo integral e é famosa a sua equação F = ma, segundo a qual “a aceleração de um
objecto (isto é, a razão de mudança da sua velocidade) é igual à força aplicada
no objecto dividida pela massa do próprio objecto”.[12]
No meu entender, o mais característico de Charles Darwin (1809-1882) não é o
célebre princípio da selecção natural, mas o longo período de pesquisas que o
levaram a percorrer o mundo, explorando as ilhas de Galápagos na costa da
América do Sul, do lado do Pacífico e navegando também o Oceano Índico e o
Atlântico Sul; fez essa longa viagem entre os seus 22 e 27 anos de idade e
aquele princípio revolucionou não só a biologia, como também a antropologia,
sociologia, ciência política e a própria economia. Com os seus catorze anos de
idade, Michael Faraday (1791-1867) lia “intensivamente” textos de obras que
desenvolveram nele a curiosidade para a electricidade, e aos trinta anos
inventou o primeiro motor eléctrico, o dínamo eléctrico. É esse o homem da
descoberta da indução electromagnética. Ao físico James Clerc Maxwell
(1831-1879) se deve as suas quatro equações, leis básicas da electricidade e do
magnetismo, ainda hoje usadas e com impacto na televisão, nos raios gama, nos
raios infravermelhos e ultravioletas e nos Raios X. Aos 27 anos de idade, John
Dalton (1766-1844) publicou um livro sobre o comportamento dos gases na
atmosfera, derivando daí a lei segundo a qual “o volume ocupado por um gás é
proporcional à sua temperatura”, mais tarde enriquecida com a sua lei das
pressões parciais. Isto mostra-nos também que a ciência não tem idade limite
para invenções. Guglielmo Marconi (1874-1937) inventou um aparelho de
comunicação a grandes distâncias sem recurso a fios, aparelho que levou o seu
nome “Rádio Marconi” e lhe valeu o Prémio Nobel em 1909. O cientista Alexander
Graham Bell (1847-1922), aos 24 anos de idade, inventou o telefone. O físico
alemão Max Planck (1858-1947), a quem se deve a teoria quântica e considerado o
pai da mecânica quântica, doutorou-se em física aos 21 anos de idade, com a
classificação máxima de summa cum laude,
pela Universidade de Munique e em 1918 recebeu o Prémio Nobel, já com sessenta
anos. Todos conhecemos a estatura científica do matemático e físico suíço,
Leonhard Euler (1707-1783). Pela sua inteligência e como diz Michael Hart, pela
“sua mente fértil”[13],
aos treze anos de idade foi admitido a ingressar na Universidade de Basiléia,
Suíça; aos dezassete anos graduou-se como mestre pela mesma universidade; aos
vinte anos, foi convidado pela Raínha Catarina I, da Rússia, a entrar na
Academia de Ciências de São Petersburgo, para três anos mais tarde, com vinte e
três anos, ascender à categoria de professor de física na Universidade daquela
cidade e com vinte seis anos sucedia ao grande matemático Daniel Bernoulli,
assumindo a cátedra de Matemática. São bem conhecidas as equações de
Euler-Lagrange e as fórmulas Euler-Fourier, com grande impacto na matemática,
engenharia e na ciência em geral. Um outro cientista já referido anteriormente,
Wilhelm Conrad Röntgen (1845-1923), o descobridor dos raios X, fez o seu
doutoramento em 1869, aos vinte e quatro de idade, pela Universidade de
Zurique.
Sem
querer ser exaustivo, não posso não me referir ao grande cientista e génio,
Albert Einstein (1879-1955), que se doutorou aos 22 anos pela Universidade de
Zurique e aos 26 anos de idade deixou escritos “os cinco artigos, quatro dos
quais o tornaram célebre” no campo da física, sobretudo o artigo terceiro,
escrito em Junho de 1905 “Sobre a electrodinâmica dos corpos em movimento”, no
qual desenvolve a teoria da relatividade. Em 1921 recebeu o Prémio Nobel em
Física, pelo seu trabalho sobre o efeito fotoeléctrico. Investigações no campo
da neurociência revelam que, apesar da complexidade dos seus artigos e da celebridade
da sua inteligência, este génio da física não teria utilizado mais do que 10%
do seu potencial de inteligência.[14]
Estas pesquisas impulsionaram o desenvolvimento dos povos. Como disse, em
princípio uma inovação científica introduz um novo paradigma, utilizando a
linguagem de Thomas Kuhn. Um novo paradigma ultrapassa os modelos anteriores de
ver o mundo e de fazer o desenvolvimento. Nisto está a riqueza da investigação
científica.
Trouxe
estes exemplos para mostrar que, na relação razão e fé, as tecnologias não põem
em causa a fé em si, nem a fé hostiliza a ciência, pelo contrário precisa dela.
O Papa João Paulo II, na sua encíclica Fides
et Ratio, considera os cientistas “valorosos pioneiros da investigação
científica, a quem a humanidade deve muito do seu progresso social actual” e
nisso, o Papa diz que sente “o dever de exortá-los a prosseguir nos seus
esforços, permanecendo sempre naquele horizonte sapiencial em que aos resultados científicos e tecnológicos se unem
os valores filosóficos e éticos, que são manifestação característica e
imprescindível da pessoa humana” (FR., nr. 106. Grifo do autor).
*
* *
Tanto
a revolução industrial do século XVIII que abriu a época moderna, como a
recente revolução informacional e digital do século XX que abriu a sociedade do
conhecimento, com as respectivas invenções, não só significam avanço da
ciência, mas também elevaram a razão ao patamar mais alto na história da
humanidade. João Paulo II diz ainda que o caminho realizado pelos cientistas,
especialmente no século XX, atingiu “metas que não cessam de nos maravilhar” (FR.,
nr. 106). O nível atingido pela ciência criou muitas expectativas e, também, ilusões
na humanidade. A expectativa de sair da pobreza e de alcançar o bem-estar. A razão
foi tida com o único instrumento válido da emancipação do homem. A modernidade
simbolizou a época da emancipação do homem no seu todo. O iluminismo
interpretava esse período como das luzes. Pois, a razão é uma luz que ilumina o
homem O homem moderno passou a acreditar que com a razão dominava a natureza,
tinha o poder sobre ela; tinha um instrumento suficiente para interpretar cientificamente
a realidade sem recurso à fé.
Recordemo-nos,
por exemplo, de Descartes, Kant e Comte. É expressivo o grito de Kant
(1724-1804) quando exorta o homem moderno: “ousa pensar.” Ao pensar por si
mesmo, Kant entendia que o homem libertava-se de toda sujeição à interpretação
da realidade dada por outros sujeitos, pois com o uso da razão ele tornava-se
sujeito capaz de interpretar a realidade por si mesmo e conhecer a verdade; não
precisava de recorrer à fé, uma vez que a razão fornecia “os princípios de
conhecimento a priori.” E “a razão pura é aquela que contém os
princípios para conhecer algo absolutamente a
priori.”[15] O
conteúdo da emancipação era, em Kant, a liberdade de pensar por si mesmo. Como
diz Denis Thouard, estudioso de Kant, este filósofo alemão não fez nenhuma
“descoberta particular” ou alguma “inovação particular”. O que fez foi
introduzir “uma mudança na maneira de ver as coisas.” Essa mudança consiste em
“nos desprender da crença espontânea no primado das coisas”; em “compreender
que as coisas que acreditamos dadas
em primeiro lugar podem ser também constituídas
por nós, em outras palavras, perceber a nossa imperceptível colaboração na constituição
do mundo objectivo”; que tomando o homem como “sujeito pensante” torna-se ao
mesmo tempo “objecto de investigação sobre a possibilidade de um conhecimento
geral.” Assim, para Kant a revolução industrial significou, sob o ponto de
vista filosófico, “uma revolução na maneira de pensar” [16]
o homem, o mundo e a realidade.
Aproximadamente
um século e meio antes, ao definir a razão como “o poder de bem julgar e
distinguir o verdadeiro do falso”[17],
Descartes (1596-1650) procurava distanciar-se dos critérios da metafísica
escolástica e da teologia para conhecimento da verdade. A sua grande
preocupação era com um método que permitisse à razão aproximar-se o mais
objectivamente possível ao “que se queria conhecer”, excluindo ao máximo
possível o erro.[18] Somente
utilizando a dúvida metódica como
“método unitário” e recorrendo aos critérios objectivos das ciências
experimentais se chegava à verdade, podendo ser comprovada cientificamente e
expressa em conhecimentos claros e distintos.
Podemos
dizer que as Meditações Metafísicas e
o Discurso de Método de Descartes
prepararam filosoficamente o iluminismo, na medida em que o seu método
consistia numa “dúvida universal acerca de tudo.” Decartes sofreu pesadas
críticas de Hans Georg-Gadamer. Este filósofo identifica as fraquezas do método
cartesiano por não conseguir resolver questões importantes na própria filosofia
moderna. Identifica três: a primeira fraqueza é aquela do método cartesiano não
ter percebido que a extensão e a autoconsciência não pertencem “à mesma ordem
de ser.” A segunda: tanto “o conceito de corpo extenso não basta para pensar a
condição viva real”, como “o conceito de espírito autoconsciente não é
aplicável ao ser vivo, pois este não possui autoconciência, e assim os animais
são, para Descartes, máquinas a lamentar.” A terceira é aquela segundo a qual
“o novo conceito de ciência é um conceito de investigação” e, na sua “moral
provisória”, Descartes isenta da investigação “a questão da moral da
universalidade das pretensões científicas.”[19]
De qualquer modo há que reconhecer que aquele grito kantiano era o culminar do
pensamento cartesiano sobre a razão, tornando-se quase o lema da modernidade.
O
caso extremo do culto à ciência, fundada na razão experimental, é de Auguste
Comte (1789-1857). Fascinaram-lhe a Revolução Francesa e o desenvolvimento industrial.
No entanto, achava que era necessária uma nova ordem, instaurando o espírito
positivo, que implicaria inclusive a “reforma intelectual e social.” Daí a
formulação do seu “novo catecismo” como instrumento da nova religião da
humanidade em substituição do Deus cristão. Introduziu o conceito de
“pensamento positivo” e apresentou o estado positivo como superior aos estados
teológico e metafísico. À sua maneira emancipa a razão humana de investigar “as
chamadas causas primeiras e finais”,
na medida em que a razão humana, com a revolução industrial e economia
capitalista, atingira tal nível de maturidade que ela por si só pode empreender
“laboriosas investigações científicas, sem ter em vista algum fim estranho,
capaz de agir fortemente sobre a imaginação, como aquele que se propunham os
astrólogos e os alquimistas.” Perante o avanço da ciência, diz ainda Comte, “a
nossa actividade intelectual estimula-se suficientemente com a pura esperança
de descobrir as leis dos fenómenos, com o simples desejo de confirmar ou
informar uma teoria.”[20]
Comte fascina-se pelas ditas “ciências positivas” e afirma que “somente (…) o
ensino das ciências pode constituir para nós a base duma nova educação geral
verdadeiramente racional.”[21]
Onde fica o papel da fé? Não era sua preocupação. Reclamava, sim, a emancipação
da ciência, situando-a muito distante da fé em Deus.
*
* *
5. Vejamos,
rapidamente, a globalização.
Vou
recorrer a dois autores portugueses, António Flávio Moreira e José Augusto
Pacheco, ambos docentes universitários e organizadores de uma colectânea de
artigos sobre a globalização e educação, incidindo nos desafios para políticas
e práticas.[22]
De
acordo com esses docentes, “a palavra globalização
tornou-se tão obsessiva que ‹como todas as palavras que entram em voga em
determinada altura, é inevitável e simultaneamente insuportável›.” Os mesmos
autores reconhecem que “a globalização é uma questão difícil de contornar
sempre que pretendemos caracterizar as sociedades contemporâneas.” [23]
Destacarei com eles algumas características desse fenómeno. Tomo a palavra
fenómeno no sentido etimológico de φαινόμενον,
do verbo grego φαίνομαι, que significa
aparecer. Portanto, fenómeno como aquilo que aparece, se manifesta.
O
Prémio Nobel de Economia Joseph Stiglitz e o sociólogo Boaventura de Souza
Santos reconhecem que a globalização é um fenómeno essencialmente económico e
financeiro, com dimensões social, política e cultural.[24]
Diferentemente
da maneira como a revolução industrial se expandiu e chegou até a África à
busca de matéria-prima e, sobretudo, da mão-de-obra barata e escrava, a
revolução informacional contemporânea expande-se à velocidade de um forte
“vendaval globalizador”.[25]
Esse vendaval “assola o planeta”[26],
ao ritmo de um autêntico sunami de
informações, com os seus efeitos positivos e negativos. Um dos efeitos é que
permite diversificar e aprofundar as “relações de (inter)dependência entre
regiões e povos.” Outro efeito é “a crescente perda de protagonismo do Estado
nacional”, reduzindo-lhe o poder e a soberania. Assistimos, hoje, quase todos
os dias a essa perda de poder dos Estados, como evidencia a actual crise
financeira mundial. Os Estados não conseguem impor-se junto das decisões do FMI
que representa os interesses de grandes conglomerados financeiros mundiais
(aqueles que realmente mandam, não se importando com a pobreza dos povos) e
funciona como o real Estado Global. Esses conglomerados financeiros evitam
aparecer publicamente, usam o FMI que, por sua vez, cria as famosas troikas com
a missão de tudo fazer para fazer valer as suas medidas impopulares e garantir
os seus lucros. As troikas são assim a face visível da invisibilidade daqueles
conglomerados. Assim, ao rotular as sociedades ocidentais como sociedades de
conhecimento, ou seja, de informação, a globalização torna-as ao mesmo tempo em
“sociedades de risco.” Criou uma “obsessão pela eficácia e pela rentabilidade
financeira a curto prazo” como “critérios exclusivos de referência e de medida
daquilo que é bom, útil e necessário.” Como resultado, conquista-se o mercado,
perde-se a sociedade, e enfraquecem-se “os princípios fundadores das sociedades
modernas”, que são “a cidadania, a solidariedade e o bem comum”; conta apenas a
lógica de mercado[27].
Quando se esperava uma maior solidariedade humana, com a globalização notamos o
recrudescimento de um individualismo económico e financeiro, exacerbado pela
corrupção.
A
globalização das novas tecnologias lançou a ideia de aldeia global, criando uma
grande expectativa de vida melhor. O pressuposto que é alimentado é que,
tornando o mundo em aldeia global, a globalização facilitaria a toda a gente o
acesso aos seus benefícios de ordem económica, social, cultural, mas com
reserva aos benefícios financeiros. Essa vida melhor não se realizou, assim
como não se concretizou a promessa do iluminismo de um futuro melhor. Hoje, não
são apenas indivíduos que ficam pobres, mas nações inteiras são induzidas à
pobreza dos seus povos, sobretudo com crescimento galopante do desemprego. A
globalização funciona sob o comando da razão
informacional das novas tecnologias de informação e comunicação. O expoente
da razão informacional é o especialista. “O especialista é aquele que domina as
novas tecnologias de informação e comunicação e, a partir da sua perícia
técnica, procura impor-se a vários níveis da sociedade com a sua vara
tecnológico-messiânica, convencendo, por meio de marketing, que a solução dos
problemas da sociedade está nessas tecnologias. Os especialistas idolatrizam-se
e idolatrizam a sua especialidade como se ela fosse em si; tornam-se os
demiurgos contemporâneos.[28]
Se a revolução industrial do século XVIII provocou uma revolução na maneira de
pensar, usando a expressão de Kant, a revolução informacional das novas
tecnologias provoca uma mudança na maneira de pensar a realidade social, impõe
uma mudança na maneira de agir e até nas formas de sentir, pondo em causa os
valores ditos tradicionais de viver a fé, e agravou a pobreza dos povos,
tristemente aproveitada pelas recentes religiões da teologia da prosperidade. A
globalização procura, de certa maneira, abalar os fundamentos da fé. Agora podemos entender a preocupação da
Igreja.
*
* *
6. Onde está, então, o
problema?
Especificando
melhor: quais são as principais preocupações da Igreja na relação fé e razão,
mais extensivamente, entre a ciência, a técnica e a fé? E que soluções se propõe
para essas preocupações?
Podemos
encontrar essas preocupações e respectivas soluções nos documentos da própria
Igreja.
Tanto
o Concílio Vaticano II como os documentos pontifícios reconhecem o papel da
ciência e os avanços alcançados pelo homem. Já em 1965, a Gaudium et Spes (a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo
Contemporâneo) reconhecia as “mudanças profundas e rápidas (…) provocadas pela
inteligência e pela actividade criadora do homem.” Na altura o Concílio
Vaticano II entendia que essas mudanças se estendiam “gradualmente ao mundo
inteiro.”[29] Hoje,
temos de reconhecer que, com o avanço das tecnologias, essas mudanças
estendem-se ao mundo inteiro a um ritmo acelerado, ou seja, a uma velocidade
estonteante dum “vendaval globalizador”. Em segundo lugar, a Gaudium et Spes reconhece igualmente que
essas mudanças “reflectem-se no próprio homem, nos seus juízos, nos seus
desejos individuais e colectivos, no seu modo de pensar e de agir, tanto em
relação às coisas como aos outros homens.” Nessa altura o Concílio Vaticano II
não falava de globalização, mas, sim, fala de “uma verdadeira metamorfose
social e cultural, cujos efeitos se repercutem até na vida religiosa.” Em 1998
o Papa João Paulo II refere-se às “vastas transformações geopolíticas,
verificadas depois de 1989” e fala já, dentre várias revoluções, a da
“globalização da economia e da alta finança” como “uma realidade.” Reconhece,
porém, que é possível tirar “proveito dos rápidos progressos nas tecnologias
informáticas.” No entanto ele adverte, na sua Mensagem do Dia Mundial da Paz
1998, que, nesta era da globalização, o desafio consiste em “assegurar uma
globalização na solidariedade, uma
globalização sem marginalização.” Termina
o parágrafo dizendo que é “um dever de justiça, que comporta notáveis
implicações morais na organização da vida económica, social, cultural e
política das nações.”[30]
Bento XVI diz, na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Africae Munus, que a globalização é “um desafio a enfrentar”,
empenhando-se “sem cessar por favorecer uma orientação cultural personalista e
comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração mundial.”[31]
Na Inter Mirifica (Decreto sobre os Meios
de Comunicação Social), o Concílio Vaticano II começa por acolher aqueles
“maravilhosos inventos da técnica”, como a Imprensa, o Cinema, a Rádio, a
Televisão e outros”, que “abriram novos caminhos para comunicar facilmente
notícias, ideias e ordens.” Prossegue dizendo que “a Santa Igreja reconhece que
estes instrumentos, rectamente
utilizados, prestam ajuda valiosa ao género humano, posto que contribuem
eficazmente para unir e cultivar os espíritos, propagar e afirmar o reino de
Deus.”[32]
O
problema está naquilo que João Paulo II resume na sua Carta Encíclica Fides et Ratio: conseguir em todas essas mudanças a “razão recta” (= orthos logos,
recta ratio). Esse é o desafio das
escolas filosóficas: que a razão consiga “intuir e formular os princípios
primeiros e universais do ser, e deles deduzir correcta e coerentemente
conclusões de ordem lógica e deontológica.” Diz ainda o Papa que a Igreja
aprecia “o esforço da razão na consecução de objectivos que tornem cada vez
mais digna a existência pessoal.” No entanto, “ela vê, na filosofia, o caminho
para conhecer verdades fundamentais relativas à existência do homem” e, ao
mesmo tempo considera a filosofia uma “ajuda indispensável para aprofundar a
compreensão da fé e comunicar a verdade do Evangelho a quantos ainda a não
conhecem.”[33]
O
Papa João Paulo II concretiza melhor as preocupações da Igreja. Transcrevo na
íntegra as suas palavras:
“(…) na errada convicção de que tudo
deve ser dominado pela técnica, (…) a razão, sob o peso de tanto saber, em vez
de exprimir melhor a tensão para a verdade, se curvou sobre si mesma,
tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e
de ousar atingir a verdade do ser. A filosofia moderna, esquecendo-se de
orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação no
conhecimento humano. Em vez de se apoiar na capacidade que o homem tem de
conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos.”[34]
Na
mesma encíclica Fides et Ratio, o
Papa enuncia várias correntes de pensamento que constituíram e continuam a
constituir a preocupação da Igreja. Daí, a atenção especial que dedica à filosofia.
Refere-se ao agnosticismo (expressão
da “desconfiança geral e céptica” da dimensão racional da fé (FR., nr.45); ao relativismo e cepticismo (nr. 5, p. 11); à “crítica
racionalista que se fazia sentir contra a fé” aquando do Concílio Vaticano
I e negava “qualquer conhecimento que não fosse fruto das capacidades naturais
da razão” (FR, nr. 8); à “mentalidade
imanentista e aos reducionismos duma
lógica tecnocrática” (FR., nr. 15); às filosofias
do absurdo que duvidam do sentido
da vida (FR, nr. 26); às “diversas formas de esoterismo que hoje se difundem mesmo entre alguns crentes,
privados do necessário sentido crítico!” (FR, nr. 37). Constata com tristeza e
lamenta como ao longo da história, sobretudo a partir da baixa Idade Média,
foram surgindo correntes filosóficas que se especializaram na separação da fé
da razão, com destaque para o “pensamento filosófico moderno” que se
desenvolveu “num progressivo afastamento da revelação cristã, até chegar
explicitamente à contraposição” (FR., nr. 46). São exemplos: o idealismo e ‘as suas diversas formas do humanismo ateu, elaboradas
filosoficamente, (…) apontam a fé como prejudicial e alienante para o
desenvolvimento pleno do uso da razão”; “sistemas
totalitários traumáticos para a humanidade”[35];
a mentalidade positivista que se
afastou de toda a visão cristã do mundo, não fazendo nenhuma “alusão à visão
metafísica e moral”; o niilismo, esta
“filosofia do nada” que surge “na sequência da crise do racionalismo” e para o
qual “tudo é fugaz e provisório”. Finalmente o Papa João Paulo II constata na
cultura moderna uma “progressiva separação entre a fé e a razão filosófica.”
(FR., nrs. 36-48, 90).
*
* *
7. Que soluções
ou saídas?
João
Paulo II denuncia algumas correntes de pensamento que não são soluções desse
drama da separação da fé da razão, até porque elas escondem perigos, que,
infelizmente, segundo suas palavras, influenciam alguns teólogos (FR., nr. 86).
Refere-se: i) ao ecletismo, que
“costuma assumir ideias tomadas isoladamente de distintas filosofias, sem se
preocupar com a sua coerência e vinculação sistemática, nem com o seu contexto
histórico” (FR., nr. 86) e, como comenta o Padre Manfredo Araújo de Oliveira,
“sem levantar a questão de sua validade”[36];
-- ii) ao historicismo, que faz
consistir a verdade na “sua adequação a um determinado período e função
histórica”, negando, “implicitamente a validade perene da verdade”; -- iii) ao modernismo, esta outra forma do
historicismo, que troca “a actualidade pela verdade”, pois limita-se ao “uso
das afirmações e termos filosóficos mais recentes, descurando exigências
críticas que, à luz da tradição, se deveriam eventualmente colocar.” (FR., nr
87). – iv) Em quarto lugar, o Papa refere-se ao cientificismo, cujas ideias não diferem muito do positivismo e do
neopositivismo; ele é uma concepção filosófica que “recusa a admitir como
válidas, formas de conhecimento distintas daquelas que são próprias das ciências
positivas” e reduz todo o conhecimento religioso e teológico, o saber ético e
estético à “pura imaginação”; remete para o domínio do irracional ou da
fantasia “tudo o que se refere à questão de sentido da vida”. Para o
cientificismo, “aquilo que se pode realizar tecnicamente, torna-se, por isso
mesmo, também moralmente admissível” (FR., 88). – v) Diz também que não é
solução o pragmatismo, que é uma
“atitude mental própria de quem, ao fazer as suas opções, exclui o recurso a
reflexões abstractas ou a avaliações fundadas sobre princípios éticos.” Para o
Papa essa atitude passa por uma certa concepção de democracia que se afasta dos
“fundamentos de ordem axiológica” (FR., 89). Insurge-se contra o pragmatismo dogmático, com o seu
reducionismo, (…), segundo o qual as verdades da fé nada mais seriam do que
regras de comportamento” (FR., 97).
Para
João Paulo II a melhor solução para a “razão recta” (FR., nr. 4), termo com que
iniciou a encíclica, é o diálogo. O
Papa justifica-se com a história da própria Igreja. Começa por afirmar que “os
pais da filosofia tiveram por missão mostrar a ligação entre a razão e a
religião”; não se contentando com “os mitos antigos, procuraram dar fundamento
racional à sua crença divindade. (…) Foi nesta base que os Padres da Igreja instituíram
um diálogo fecundo com os filósofos antigos, abrindo o caminho ao anúncio e à
compreensão do Deus de Jesus Cristo.” (FR., nr. 36). Dá exemplo de S. Paulo que
teve discussões “com alguns filósofos epicuristas e estóicos”, como consta dos
Actos dos Apóstolos (Act. 2,18). Dá outros exemplos de S. Justino, Clemente de
Alexandria (que “chamava ao Evangelho «a verdadeira filosofia»”) (FR., nr. 38).
Mas encontra, sobretudo, em Santo Agostinho (FR., nrs. 40-42) e S. Tomás de
Aquino (FR., nrs. 43-44) exemplos fecundos de dois Padres da Igreja que se
debruçaram sobre a relação entre a razão e fé, entre a ciência e a religião
cristã, entre a filosofia e a teologia, e demonstraram a existência de uma “harmonia
fundamental entre o conhecimento filosófico e o conhecimento da fé” (FR., nr.
42), ou seja, de “harmonia que existe entre a razão e a fé”(FR., nr. 43). Faz
recordar a afirmação de S. Tomás de Aquino na Suma contra os Gentios de que “a fé não teme a razão, mas
solicita-a e confia nela; como a graça supõe a natureza e a leva à perfeição,
assim também a fé supõe e aperfeiçoa a razão” (FR., nr 43). Nas suas
investigações S. Tomás de Aquino demonstra, inclusive, que a filosofia e a
sabedoria teológica são duas formas complementares de sabedoria (FR., nr. 44). O
Papa conclui dizendo que a “fé e a razão «se ajudam mutuamente», exercendo, uma
em prol da outra, a função tanto de discernimento crítico e purificador, como
de estímulo para progredir na investigação e no aprofundamento.” (FR., 100).
Pelo
tom que o Papa dá ao tema da encíclica, eu diria que ela é mais uma encíclica
de filosofia no mundo contemporâneo. Reparemos que João Paulo II preparava o
novo milénio. O Papa dá um grande destaque à filosofia e à sua importância para
o homem contemporâneo. Isto porque: a filosofia é “sabedoria prática e escola
da vida”(FR., 37); “a filosofia é como que o espelho onde se reflecte a cultura
dos povos” (FR., 103) e porque “o pensamento filosófico é, frequentemente, o
único terreno comum de entendimento e diálogo com quem não partilha a nossa fé
(FR., nr 104).
*
* *
8. Breve conclusão
Não
pretendi esgotar o tempo. E não é possível. É muito difícil tirar conclusões
num tema que, por sua natureza, não se esgota. Quis apenas, dentro das
reflexões conciliares e pontifícias, retomar o tema recorrente na Igreja sobre
a relação entre a fé e a razão. Todos os documentos mostram que não só não há
contradição entre a fé e a razão, como as duas se complementam. Nisto joga
papel importante a filosofia no aprofundamento dessa relação. O Santo Padre o
Papa João Paulo II apela aos filósofos para que saibam “aprofundar aquelas
dimensões de verdade, bem e beleza, à quais dá acesso a palavra de Deus”.
Desenvolvendo-se “de harmonia com a fé” e aceitando “o estímulo das exigências
teológicas, a filosofia faz parte daquela «evangelização da cultura»”, referida
pelo Papa Paulo VI na Exortação Apostólica Evangelii
Nuntiandi (nr. 20)[37].
João Paulo II exige filósofos crentes e competentes (FR., nr. 104). Pois só assim será possível neste ano da fé os
filósofos, na articulação com o Bispo do lugar, “intensificar a reflexão sobre
a fé, (…) ajudar (…) os crentes em Cristo a tornarem mais consciente e
revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo num momento de profunda
mudança como este que a humanidade está a viver” – diz Bento XVI.[38]
No dia-a-dia sentimos como o vendaval da globalização abala as consciências
religiosas, sobretudo a fé em Cristo e na Igreja. Sentimos como adultos e,
sobretudo, jovens são hipnotizados pelos fenómenos da globalização e inebriados
pelas pirotecnias de milagres com promessas de melhoria da vida.
Ao
enfatizar o diálogo que sempre
caracterizou a Igreja na relação entre a fé e a razão, João Paulo II está a
dizer aos filósofos que eles têm de ser homens e peritos do diálogo entre a fé
e a razão. Trata-se de diálogo alicerçado em argumentos racionais e fortificado
pelo Espírito Santo. Imprime na filosofia a racionalidade dialógica como
capacidade de escuta e fala com o outro. Ou seja, a filosofia ajuda a
desenvolver a competência comunicativa, referida por Jürgen Habermas.[39]
Nisso, e lembrando Bento XVI na Porta
Fidei, assim como “a Igreja nunca teve medo de mostrar não haver qualquer
conflito entre fé e ciência autêntica, porque ambas tendem, embora por caminhos
diferentes, para a verdade” (PF., nr. 12), um filósofo crente e competente
também não deve ter medo de manifestar a sua fé tanto em privado como em
público. Donde Bento XVI insistir na profissão da fé do Credo como ensina o
Catecismo da Igreja Católica (PF., nr 10).
Num
país como o nosso, acho importante a filosofia, na medida em que pode ajudar a
política a enfrentar racionalmente “os problemas mais urgentes da humanidade,
como por exemplo o problema ecológico, o problema da paz ou da convivência das
raças e culturas” (FR., 104), a saber dialogar com o mercado para que este
beneficie sempre e em primeiro lugar o povo moçambicano, tirando-o da pobreza;
consolidar a paz. Não é tarefa fácil, por isso o Papa João Paulo II exige fé e
competência.
Caros
Seminaristas:
Concluo
esta modesta intervenção com o pensamento de João Paulo II, i) estudar
filosofia é um “esforço duma paciente investigação sobre aquilo que merece ser
vivido; -- ii) “a filosofia, que tem a grande responsabilidade de formar o
pensamento e a cultura através do apelo perene à busca da verdade, deve
recuperar vigorosamente a sua vocação originária” (FR., 6); -- iii) sejais
filósofos crentes cristãos e competentes.
Gostaria
de terminar, agradecendo pelo convite que me foi feito pelo Sr. Reitor, de
participar nessa cerimónia de abertura do Ano Académico do Seminário Filosófico
de Santo Agostinho e na presença de S. Ex.cia Rev.ma D. Francisco Chimoio,
Arcebispo de Maputo e do ilustre Corpo Docente.
A
Todos, Muito obrigado pela atenção dispensada!
[1] DE
AQUINO, Sto. Tomás. “Súmula Contra os Gentios.”. In: DE AQUINO, Sto.
Tomás et alii. Seleção de Textos. São
Paulo, Abril Cultural e Industrial, 1973, p. 66-67.
[2] Idem, p. 67.
[3] DE
AQUINO, São Tomás. O Ente e a Essência.
Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa, Instituto Piaget, 200, p. 75.
[4] KUHN,
Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Trad. Beatriz Vianna
Boeira e Nelson Boeira. 3. Ed. São Paulo, Perspectiva, 1994, p. 83.
[5] Idem, p. 84.
[6] Idem, p. 88.
[7] Idem, p. 87.
[8] Idem, p. 89.
[9] Idem, p. 91.
[10] Idem, p. 89 e 91.
[11] MORIN,
Edgar. O Problema Epistemológico da
Complexidade. Mira-Sintra – Mem- Martins, Publicações Europa-América, s.d.,
p. 30.
[12]
HART, 2002: 57.
[13]HART,2002:
168-169.
[14] Cfr.
MAZULA, 2006.
[15] KANT,
Immanuel. Crítica da Razão Pura.
Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosbuerger. 3. Ed. São Paulo, Nova Cultural,
1987, p. 34.
[16] THOUARD,
Denis. Kant. Trad. Tessa Moura Lacerda.
São Paulo, Estação Liberdade, 2004, p. 44-46. Grifos do autor.
[17]
DESCARTES, René. Discurso do Método &
As Paixões da Alma. Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 4. Ed. São
Paulo, Nova Cultural, 1987, p. 29.
[18] GADAMER,
Hans-Georg. Elogio da Teoria. Trad.
João Tiago Proença. Lisboa, Edições 70, 2001, p. 74.
[19] GADAMER,
Op. cit., p. 75.
[20] COMTE,
Auguste. Curso de Filosofia Positiva
e outros textos. Trad. José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo, Abril
Cultural, 1978, p. 6-7.
[21] COMTE, Op. Cit., p. 16.
[22] MOREIRA,
António Flávio & PACHECO, José
Augusto. Globalização e Educação: Desafios para políticas e práticas.
Porto, Porto Editora, 2006.
[23] MOREIRA,
2006: 63-64.
[24] C fr. STIGLITZ,
Joseph E. i) Globalização: A grande
desilusão. Trad. Maria Filomena Duarte. Lisnoa, Terramar, 2002. – ii)
____. Tornar Eficaz a Globalização. Trad. Luísa Venturini. Lisboa, ASA, 2007. – SANTOS, Boaventura de Souza. Globalização: Fatalidade ou Utopia?
Porto, Edições Afrontamento, 2002.
[25] MOREIRA,
Op. cit., p. 62.
[26] Ibidem.
[27] MOREIRA,
Op. cit., p. 62-66.
[28] Cfr.
MAZULA, Brazão. Na Esteira da Academia:
Razão, Democracia e Educação. Maputo, Texto Editores, 2008, p. 34.
[29] GAUDIUM
ET SPES, nr. 4.
[30] JOÃO
PAULO II. Da Justiça de Cada um Nasce a Paz para Todos. Mensagem para a
Celebração do Dia Mundial da Paz – 1º de Janeiro de 1998. Cidade do Vaticano,
Libreria Editrice Vaticana, 1997, nr. 3. Grifos do autor.
[31] BENTO
XVI. O Compromisso da África - Africae Munus. Exortação Apostólica Pós
Sinodal sobre a Igreja na África ao Serviço da Reconciliação, da Justiça e da
Paz. Prior Velho, Filhas de São Paulo, 2011, nr. 86, p. 68.
[32] INTER MIRIFICA, nr. 1 e 2. Grifos nossos.
[33] JOÃO
PAULO II. A Fé a Razão (“Fides et
Ratio”). Carta encíclica sobre as relações entre a Fé a Razão. 2. Ed. Lisboa,
Filhas de São Paulo, 1998, nr. 4 e 5, p. 10.
[34]
Idem, nr. 5.
[35] Reco
mendo
também a leitura “As Origens do
Totalitarismo” de Hannah Arendt.
[36]
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Diálogos
entre razão e fé. São Paulo, Paulinas, 2000, p. 34.
[37] PAULO
VI. Evangelii Nuntiandi. Exortação
Apostólica sobre a Evangelização no Mundo Contemporâneo. São Paulo, Paulinas,
1976.
[38] BENTO
XVI. A Porta da Fé – Porta Fidei.
Carta Apostólica pela qual proclama o Ano da Fé. 7. Ed. Prior Velho, Filhas de
São Paulo, 2012, nr. 8.
[39]
HABERMAS, Jürgen. Racionalidade e
Comunicação. Trad. Paulo Rodrigues. Lisboa, Edições 70, 2002.
Sem comentários:
Enviar um comentário