segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Assinado Acordo de paz em Moçambique, com cessar fogo imediato. Declaração de Joaquim Chissano

O Governo moçambicano e a Renamo assinaram neste domingo um acordo para pôr fim à violência do último ano e meio e permitir a realização das eleições presidenciais, previstas para 15 de Outubro. “O cessar-fogo foi assinado”, anunciou Saimone Macuiane, deputado e chefe da delegação de negociadores da Renamo, citado pela agência AFP (retomada pela edição on line do “Público”) adiantando que o acordo entraria em vigor às 22h deste mesmo dia 24 de agosto.

Praticamente concluído desde o início do mês, foram ainda necessárias mais algumas reuniões para que as duas partes assinassem o acordo. Ainda assim, e ao contrário do que estava previsto, nem Armando Guebuza, Presidente moçambicano e líder da Frelimo, nem Afonso Dhlakama, chefe da Renamo, colocaram as suas assinaturas no papel.

Macuiane deu, no entanto, a entender que o aperto de mão entre os dois homens poderá acontecer quando estiverem reunidas as condições de segurança para Dhlakama regressar a Maputo – “é evidente que haverá um acordo de alto nível, simbólico”. O líder da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) está em local desconhecido desde que, em Outubro do ano passado, as Forças Armadas tomaram a base de Satungira, Sofala, onde viveu no ano anterior.


Ainda assim, o clima era de optimismo. “Entrámos numa nova era para o país” e a trégua “é um passo importante com vista à reconciliação nacional e a uma paz durável”, congratulou-se Macuiane. O ministro da Agricultura, José Pacheco, foi o signatário pelo Governo e aos jornalistas disse “ser necessário começar a pôr de imediato em prática o acordo, o que implica uma declaração recíproca e simultânea do fim das hostilidades”.

Em declarações à RTP – África, o ex-presidente moçambicano, Joaquim Chissano congratulou-se com o acordo obtido, que – disse – precisa agora de ser “acarinhado, para que permaneça para sempre”…
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O acordo prevê uma amnistia para as “acções criminosas” motivadas pela instabilidade político-militar, a aprovar pelo Parlamento, e a criação de uma missão de observadores militares estrangeiros que supervisione o fim das hostilidades e integração nas Forças Armadas e na polícia – ou a reinserção socioeconómica – dos homens armados que a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) ainda mantém. Dhlakala poderá, no entanto, continuar a contar com centenas de “guardas de segurança” e não está previsto que o partido entregue as armas que detém, adianta a AFP, citada por “Público”.

Fonte: Radio Vaticana

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

ORAÇÃO JUBILAR

Pai Santo, fonte de todo Bem,
origem de tudo quanto temos e somos,
ensinai-nos a reconhecer os benefícios da vossa bondade
e a amar-vos com todo o nosso coração e com todas as nossas forças.

Recebei   a nossa acção de graças pelos benefícios recebidos
ao longo dos 25 anos do nosso Seminário
e fazei que os dons da vossa bondade
orientem a nossa vida para  a glória do vosso nome.

Confirmai em nós o dom da fortaleza e da alegria,
para que possamos servir-vos mais fielmente
e alcançar ainda novos benefícios.

Fazei  Senhor que germinem e se desenvolvam
as sementes que generosamente lançastes no campo da vossa Igreja,
para que sejam cada vez mais numerosos e dedicados
aqueles que chamaste para evangelizar e servir os seus irmãos.

Senhor Jesus,
fazei-nos exultar em santa alegria e em filial acção de graças,
Suscitai na vossa Igreja educadores e mestres
que se consagrem inteiramente
ao trabalho da formação humana, cristã e sacerdotal dos pastores  do Vosso Povo.
Amem.

Inicio da Novena de Preparação à Festa do Padroeiro e às celebrações centrais do ano jubilar

Teve início na Terça feira, 19 de Agosto, o devocionário de oração e reflexão espiritual em vista à Solenidade do Padroeiro do Seminário, que neste ano, coincide com o ponto mais alto das celebrações do Ano jubilar.

Eis de seguida as personalidades que irão animar a oração Novena:

Dia da Semana
Data
Orientador
         Terça feira
19.08.2014
Pe Tonito Muananoua
         Quarta feira
20.08.2014
Pe Aloysio Kawesi
           Quinta feira
21.08.2014
Pe Ambósio
           Sexta feira
22.08.2014
Dom Paulo Mandlate
          Sábado
23.08.2014
Padre Arcélio Matola
          Domingo
24.08.2014
Pe Marcos Mubango
           Segunda feira
25.08.2014
Pe André SSS
          Terça feira
26.08.2014
Pe Alberto Buque
          Quarta feira
27.08.2014
Pe. Eugénio Langa

Local: Capela do Seminário Santo Agostinho

Horário: Das 17.30 às 19 horas

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

X JORNADAS TEOLÓGICAS: Deus Trindade, unidade dos homens-O monoteísmo cristão contra a violência

Decorrem desde esta manhã, até ao próximo dia 20 de Agosto, no Seminário Teológico Interdiocesano S. Pio X, as X Jornadas Teológicas sob o tema "Deus Trindade, unidade dos homens-O monoteísmo cristão contra a violência" um documento da Comissão Teológica internacional, publicado no ano passado.
Esta efeméride  contou com a presença de S. Excia Reverendíssima Dom Francisco Chimoio que procedeu a abertura solene.
O primeiro tema, coube ao Prof. Doutor Brazão Mazula.

Eis na íntegra, o documento em estudo:

ÍNDICE GERAL

Nota preliminar

APRESENTAÇÃO

CAPÍTULO I. Suspeitas acerca do monoteísmo [1-18]

1 . A experiência religiosa do divino [1-2]
2 . Monoteísmo e violência: um nexo necessário? [3-9]
3 . Politeísmo tolerante? Uma metáfora discutível [10-14]
4 . A responsabilidade atribuída à nossa fé [15-18]

CAPÍTULO II. A iniciativa de Deus no caminho de homens [19-42]

1 . A aliança com Deus, destinada a todos os povos [19-23]
2 . Discernimento cristão da antiga revelação [24-30]
3 . Praticar o amor, observar a justiça [31-35]
4 . A fé no Filho, contra a inimizade entre os homens [36-42]

CAPÍTULO III. Deus, para nos livrar da violência [43-66]

1 . Deus Pai salva-nos pela Cruz do Filho [43-47]
2 . A superação da violência, no Filho [48-53]
3 . A carne do homem, destinada à glória de Deus [54-59]
4 . A esperança dos povos, a fé da Igreja [60-66]

CAPÍTULO IV. Fé em face da amplitude da razão [67-84]

1 . A via do diálogo e o nó do ateísmo [67-68]
2 . O confronto sobre a verdade da existência de Deus [69-72]
3 . A crítica da religião e o naturalismo ateu [73-75]
4 . O empenhamento da razão: o mundo criado, o Logos de Deus [76-77]
5 . Transcendência divina e relações no e com o Deus único [78-84]

CAPÍTULO V. Os filhos de Deus dispersos e reunidos [85-100]

1 . A dignidade do ser humano individual e o liame dos muitos [85-87]
2 . Deus corrobora a paixão pela justiça, reabre a esperança da vida [88-92]
3 . A purificação religiosa da tentação do domínio [93-96]
4 . A força da paz com Deus, missão da Igreja [97-100]

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NOTA PRELIMINAR

No seu lustro 2009-2014, a Comissão Teológica Internacional levou a cabo um estudo de certos aspectos do discurso cristão sobre Deus, defrontando-se sobretudo com a tese segundo a qual haveria uma relação entre monoteísmo e violência. O trabalho desenvolveu-se no seio de uma Subcomissão, presidida pelo Rev. Philippe Vallin e composta dos seguintes membros: Rev. Peter Damian Akpunonu, P. Gilles Emery, O.P., S.Excª Revma Savio Hon Tai-Fai, S.D.B., S.Excª Revma Charles Morerod, OP, Rev. Thomas Norris, Rev. Javier Prades López, S.Excª Revma Paul Rouhana, Rev. Pierangelo Sequeri, Rev. Guillermo Zuleta Salas.

As discussões gerais sobre este tema realizaram-se em vários encontros da Subcomissão e durante as Sessões Plenárias da Comissão, que tiveram lugar entre 2009-2013. O presente texto, de título "Deus Trindade, unidade dos homens. O monoteísmo cristão contra a violência", foi aprovado pela Comissão "em forma específica" a 6 de Dezembro 2013, e entregue, em seguida, ao Presidente, SE Bispo Gerhard L. Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que autorizou a sua publicação.

APRESENTAÇÃO

O texto de reflexão teológica que apresentamos destina-se a evidenciar alguns aspectos do discurso cristão sobre Deus que, no contexto actual, exigem um esclarecimento teológico específico. A ocasião imediata deste esclarecimento é a teoria, exposta com argumentos de índole diversa, segundo a qual existe uma relação necessária entre o monoteísmo e as guerras de religião. A discussão em torno deste liame revelou numerosos motivos de incompreensão da doutrina religiosa, a ponto de obscurecer o autêntico pensamento cristão do único Deus.

Poderíamos resumir o fito do nosso discurso numa dupla pergunta: (a) Como é que a teologia católica se pode confrontar criticamente com a opinião cultural e política que estabelece uma relação intrínseca entre monoteísmo e violência? (b) Como é que a pureza religiosa da fé no único Deus se pode reconhecer como princípio e fonte do amor entre os homens?

A nossa reflexão pretende apresentar-se em chave de testemunho argumentado, e não de contraposição apologética. A fé cristã vê e reconhece, de facto, na excitação à violência em nome de Deus a máxima corrupção da religião. O cristianismo desemboca nesta convicção a partir da revelação da própria intimidade de Deus, que nos chega através de Jesus Cristo. A Igreja dos crentes é consciente do facto de que o testemunho dessa fé exige ser honrado por uma atitude de conversão permanente: que implica igualmente a "parresía" (ou seja, a franqueza corajosa) da necessária autocrítica.

No Capítulo I, propusemo-nos clarificar o tema do "monoteísmo" religioso na acepção que recebe e adquire em certas orientações da hodierna filosofia política. Estamos conscientes de que tal evolução exibe, hoje, um espectro muito diferenciado de posições teóricas, que vão desde o fundo clássico do ateísmo dito humanista às formas mais recentes do agnosticismo religioso e do laicismo político. A nossa reflexão visaria, antes de mais, sublinhar que a noção de monoteísmo, não destituída de significado para a história da nossa cultura, permanece ainda demasiado genérica, quando se utiliza como cifra de equivalência das religiões históricas que professam a unicidade de Deus (identificadas como Judaísmo, Islamismo, Cristianismo). Em segundo lugar, formulamos a nossa reserva crítica em face de uma simplificação cultural que reduz a alternativa à escolha entre um monoteísmo necessariamente violento e um politeísmo supostamente tolerante.

De qualquer forma, nesta reflexão sustém-nos a convicção, que por motivos vários consideramos partilhada por muitíssimos contemporâneos nossos, crentes e não-crentes, de que as guerras interreligiosas, como também a guerra contra a religião, são de todo insensatas.

Em seguida, como teólogos católicos e à luz da verdade de Jesus Cristo, procurámos ilustrar o nexo entre revelação de Deus e humanismo não-violento. Fizemo-lo mediante a reexposição de algumas implicações da doutrina peculiarmente apropriadas para iluminar o debate actual: quer no tocante à autêntica compreensão da confissão trinitária do Deus único, quer no que diz respeito à abertura da revelação cristológica para a recuperação do vínculo entre os homens.

No Capítulo II, indagamos o horizonte da fé bíblica, com especial atenção ao tema das suas "páginas difíceis": aquelas em que a revelação de Deus surge envolvida nas formas da violência entre os homens. Tentamos identificar os pontos de referência que a própria tradição escriturística realça – no seu seio – para a interpretação da Palavra de Deus. Com base neste reconhecimento, oferecemos um primeiro esboço de enquadramento antropológico e cristológico dos desenvolvimentos da interpretação do tema, requeridos pela condição histórica actual.

No Capítulo III, propomos um aprofundamento do evento da morte e da ressurreição de Jesus, na chave da reconciliação entre os homens. A oikonomia é aqui essencial à determinação da theologia. A revelação inscrita no acontecimento de Jesus Cristo, que torna universalmente relevante e apreciável a manifestação do amor de Deus, permite neutralizar a justificação religiosa da violência com base na verdade cristológica e trinitária de Deus.

No Capítulo IV, a nossa reflexão empenha-se na clarificação das aproximações e implicações filosóficas do pensamento de Deus. Abordam-se aqui, antes de mais, os pontos de discussão com o ateísmo actual, largamente presente e concentrado nas teses de um naturalismo antropológico radical. Por fim – também em prol do confronto interreligioso sobre o monoteísmo – propomos uma espécie de meditação filosófico- teológica sobre a integração entre a revelação da íntima disposição relacional de Deus e a concepção tradicional da sua absoluta simplicidade.

No Capítulo V, por último, condensamos os elementos da especificidade cristã que definem o empenho do testemunho eclesial na reconciliação dos homens com Deus e de uns com os outros. A revelação cristã purifica a religião, no próprio momento em que lhe restitui o seu significado fundamental para a experiência humana do sentido. Por isso, no nosso convite à reflexão temos bem presente a necessidade especial – sobretudo no horizonte cultural de hoje – de tratar sempre conjuntamente o conteúdo teológico e o desenvolvimento histórico da revelação cristã de Deus.


CAPÍTULO I
SUSPEITAS SOBRE O MONOTEÍSMO



 1. A experiência religiosa do divino

1. Juntamente com uma multidão imensa de homens e mulheres, que habitam e habitaram este planeta, reconhecemos em “Deus” o “princípio e o fim” da existência de cada pessoa e de toda a comunidade humana[1]. A Igreja, iluminada pelas Sagradas Escrituras, afirma que o ser humano, na mediação racional da experiência, é naturalmente capaz de reconhecer Deus como criador do mundo e interlocutor do homem[2]. Neste sentido podemos entender também o que significa a descrição do ser humano como homo religiosus.

2. A abertura ao divino está tão profundamente inscrita no homem que já em si mesma se pode lobrigar – embora ainda indistintamente – como uma forma de experiência religiosa. O alcance universal desta experiência (atestada no pensamento de muitos grandes pensadores do Ocidente e do Oriente como, por exemplo, Platão ou Confúcio) é desde sempre um tema de reflexão e de pesquisa nas culturas do humano. Como pessoas que se esforçam sinceramente por viver o espírito e a prática da autêntica religião, vemo-nos, por isso, intimamente unidos a todos os que albergam e aprofundam na mente e no coração este sentido fundo e forte do divino. Estamos convencidos de que, no próprio facto da religião, em que todos os povos da terra estão originariamente radicados e plasmados, se pode reconhecer o testemunho de uma vida divina que precede todas as coisas e da qual cada coisa, em última análise, depende: material ou espiritual, conhecida ou desconhecida.

2. Monoteísmo e violência: um nexo necessário?

3. O núcleo da fé religiosa, através dos mitos e dos ritos, das crenças e das devoções, dá testemunho da experiência misteriosa de Deus e interpela na profundidade todos os seres humanos. Deus é princípio e fim de todas as coisas. E nada é como Deus. O “monoteísmo” foi assim, durante muito tempo, também reconhecido, sob o ponto de vista da história da civilização, como a forma culturalmente mais evoluída da religião: a saber, o modo de pensar o divino mais congruente com os princípios da razão. A unicidade de Deus, acessível à filosofia, foi identificada como princípio da razão natural, que precede as tradições históricas das religiões. O pensamento puramente racional da unicidade de Deus, como ponto de convergência da razão e das religiões, servira justamente para regulamentar cultural e civilmente os conflitos confessionais e inter-religiosos da modernidade. Todavia é verdade que, no decurso da história e da própria modernidade ocidental, essa configuração da religião, que as filosofias e as ciências da cultura concordaram, em seguida, em chamar “monoteísmo judeo-cristão”, foi utilizada ideologicamente, na perspectiva de um directo paralelismo teológico-político para justificar a forma monárquica do poder soberano.

4. De qualquer modo, é indubitável que esse pensamento filosófico de Deus desenvolveu, entretanto, uma imagem – filosófica e política – do monoteísmo amplamente autónoma em face da autêntica revelação cristã, que tende para o deísmo, em parte atenuando, entre os próprios crentes, a originalidade da revelação cristã; em parte, desenvolvendo uma ideia do absoluto divino em tensão, se não em conflito aberto, com a interpretação coerente da fé. A cultura ocidental contemporânea, em reacção a um certo predomínio da unidade do ser e do verdadeiro, que caracterizou a maior parte das concepções filosóficas e políticas da própria modernidade, tende agora a privilegiar a pluralidade do bem e do justo: gerando uma significativa tensão entre o reconhecimento do pluralismo e a teorização de um princípio relativista. Sem mais, a consciência e o respeito das diferenças representa uma vantagem para a valorização das singularidades e para a abertura a um estilo hospitaleiro da convivência humana. Ao mesmo tempo, a evolução desta abertura deixa emergir também a sua contradição, ou seja, a incomunicabilidade dos mundos humanos, que assim são induzidos à desconfiança – se não à indiferença – perante o empenho em buscar o que é comum à dignidade do homem. A resignação ao relativismo radical como horizonte último e insuperável da demanda do verdadeiro, do justo, do bem, não constitui de facto uma melhor garantia para a satisfação e a cooperação da convivência humana. Ele transforma-se, de facto, inevitavelmente num motivo de justificação para a indiferença e a desconfiança recíproca acerca de qualquer tema da vida e de qualquer responsabilidade da política. Quando a busca da verdadeira justiça e o empenhamento pelo bem comum caiem sob a suspeita do conformismo e da constrição, a autêntica paixão pela igualdade, pela liberdade e pelos liames bons, acaba por ser radicalmente desencorajada. Não só. Semelhante perda de confiança e de motivações, provocada por um sentir relativista total, abandona as relações humanas a uma gestão anónima e burocrática da convivência civil. E não por acaso, uma parte conspícua da crítica social assinala hoje, juntamente com o crescimento de uma imagem pluralista da sociedade, a afirmação de um desígnio totalitário do pensamento único.

5. Na trilha deste paradoxo, o ideal – a própria ideia – da verdade é objecto de uma radical denúncia. A ideia de que a busca da verdade, além de necessária para o bem comum, possa ser pensada como empreendimento comum, partilhado pacificamente e atestado de forma respeitosa, é tida por ilusória e não realista. A verdade, nesta perspectiva, não surge pensada como princípio de dignidade e de união entre os homens, que os subtrai ao arbítrio e à perversão dos seus fechamentos egoístas, indiferentes à justiça do humano que é de todos. Pelo contrário, ela é, por vezes, explicitamente indicada como uma ameaça radical para a autonomia do sujeito e para a abertura da liberdade, sobretudo porque a pretensão de uma verdade objectiva e universal, de referência para todos, se bem que acessível ao espírito humano, é imediatamente associada a uma pretensão de posse exclusiva por parte de um sujeito ou grupo humano. Ela levaria assim à justificação do domínio do homem que reivindica a sua posse sobre o homem que, de acordo com essa pretensão, dela está privado. Em virtude desta representação da verdade, que a considera inseparável da vontade de poder, também o empenhamento na sua demanda e a paixão do seu testemunho são vistos a priori como matrizes de conflito e de violência entre os homens. Em semelhante enquadramento, a preocupante retomada do que chamamos comummente – e também de modo muito genérico – “fundamentalismos religiosos” é aceite como prova evidente e definitiva desta relação.

6. O colapso do panorama moderno é inesperado: o monoteísmo é, agora, arcaico e despótico, e o politeísmo criativo e tolerante. De qualquer forma, a classificação sumária do judaísmo, do cristianismo e do islamismo como as três grandes “religiões monoteístas”, pretende indicar assim a razão do perigo que elas representam para a estabilidade e o progresso humanista da “sociedade civil”. Mas não podemos passar em silêncio o facto de que, em certas partes intelectualmente relevantes da nossa cultura ocidental, a agressividade com que é reproposto este “teorema”, se concentra sobretudo na denúncia radical do cristianismo, ou seja, justamente da religião que, naquela fase histórica, surge realmente como protagonista da instância de um diálogo de paz, e para a paz, com as grandes tradições da religião e com as culturas laicas do humanismo. O facto de assim serem descaradamente associados a uma representação da fé no Deus Único como “semente da violência” fere, sem dúvida, milhões de autênticos crentes. E não apenas cristãos. Nos discípulos do Senhor induz certamente elementos de desconcerto e de embaraço, devido ao facto de a hodierna consciência cristã lhes aparecer muito afastada da pregação da violência. Podemos, por isso, compreender o espanto dos cristãos ao verem ser-lhes atribuída uma vocação religiosa à violência perante os fiéis de outras religiões ou também os propagandistas da crítica à religião: sobretudo se considerarmos que, em muitas partes do mundo, os cristãos são maltratados com a intimidação e a violência só por causa da sua pertença à comunidade cristã. Nas próprias sociedades democráticas e laicas, o vínculo com a pertença cristã foi, muitas vezes, apontado como uma ameaça para a paz social e para o livre confronto cultural, mesmo quando as argumentações apresentadas, em apoio de opiniões que concernem à esfera pública, apelam para recursos da racionalidade comum.

7. Não pode, decerto, negar-se o reacendimento, à escala mundial, do preocupante fenómeno da “violência religiosa”, não desprovido de significativas conexões com políticas de subversão étnica e de estratégia terrorista. Nem podemos ignorar, ao considerar a própria história do cristianismo, o desvairo e o desconcerto das nossas culposas e repetidas passagens pela violência religiosa. Como se introduz, na fé em Deus, a semente da violência? E como se perverte a bênção do reconhecimento do Deus único na maldição que arroja para o caminho da violência “em nome de Deus”? A nossa reflexão pretende essencialmente oferecer elementos de compreensão da qualidade cristã do monoteísmo, em vista de uma explícita acentuação do seu nexo intrínseco com o mistério da intimidade trinitária de Deus, revelado na incarnação do Filho de Deus feito homem. A conversão do nosso espírito e da nossa mente à melhor transparência da fé deve suscitar o generoso impulso do testemunho da singularidade desta fé: que a conjuntura histórica exige com especial urgência. Ao mesmo tempo, com as nossas reflexões, propomo-nos explicitar para todos “a razão da esperança que existe em nós” (1 Pd 3, 15), mediante o mais claro discernimento do apoio que a fé cristã torna disponível para a reconversão da razão ocidental ao espírito de um humanismo melhor.

3. Politeísmo tolerante? Uma metáfora discutível

8. A ideia de uma intrínseca conexão e consequência entre monoteísmo e violência, que um certo número de intelectuais tem por evidência cultural, contribui para aprofundar a brecha da desconfiança social em face das culturas religiosas. Este facto rouba dignidade de representação ao pensamento autêntico da religião e dos crentes. A aplicação metafórica do politeísmo religioso à democracia civil, como antídoto à violência, afigura-se, por vezes, extravagante do ponto de vista histórico, sociológico e também teórico. Quando falamos da corrupção da religião que faz dela uma semente da violência, falamos decerto de um fenómeno grave e bastante sério. Mas este fenómeno não foi realmente estranho ao politeísmo das antigas lutas entre os deuses. Pensemos também, para permanecermos no âmbito da história bíblica, na violenta perseguição do imperialismo helénico perante a religião judaica (cf. 1 Mac 1-14; 2 Mac 3-10). Por sua vez, a religião politeísta do Império Romano, com toda a extraordinária modernidade do seu conceito de cidadania e da sua estrutura multi-étnica e multi-religiosa, perseguiu com especial encarniçamento o cristianismo, culpado de rejeitar a veneração do imperador como figura divina. A resposta expressou-se no testemunho não violento e na aceitação do martírio cristão.

9. O mesmo mundo ocidental, tão orgulhoso da sua civilização secularizada, é hoje obrigado a medir-se com um crescente e desconcertante desabrochamento de estilos de vida e de comportamento inspirados na violência: espontânea, imediata, destrutiva. Sempre cada vez mais inconsciente de si mesma e até eticamente justificada. Em semelhante quadro suscita decerto surpresa que as “religiões monoteístas” sejam apontadas como uma das principais matrizes de um absolutismo violento e desestabilizante para a harmonia civil. Este esquematismo surge, com demasiada evidência, ligado ao preconceito – típico do modelo racionalista – segundo o qual, também no plano existencial e social, existe um único modo de afirmar a verdade: negar a liberdade ou eliminar o antagonista.

10.  A prática actual desta crítica é, de qualquer modo, significativamente diferenciada. De facto, vai além da abstracta dedução da “violência monoteísta”, discutindo reiteradamente aspectos diferentes da relação entre convicção religiosa e razão política. O Judaísmo, enquanto religião, é geralmente subtraído a uma acusação directa, quer pelo facto, de todo compreensível, de que o judaísmo suscita até demasiado claramente a vergonhosa memória da inominável violência sofrida; quer pelo facto de que não existe a percepção de um empenhamento virado para a missão e a conversão (proselitismo). Quanto ao Islão, o reflexo do conflito histórico entre domínio cristão e domínio islâmico, é prevalentemente interpretado em chave geopolítica, mais do que teológica. De facto, a questão crucial da relação entre observância religiosa e legislação civil é um tema de discussão e de pesquisa acerca do qual todas as culturas religiosas estão ainda muito divididas e oscilantes no seu seio. Os excessos do “fundamentalismo” religioso, no Ocidente e no Oriente, surgem radicalmente problemáticos também do ponto de vista da sua genuína inspiração religiosa. Trata-se, pois, de um tema de discussão comum às religiões. A sua correlação com a crença monoteísta revela-se, por isso, como uma simplificação excessiva, pretensiosa, que oculta e obscurece a questão mais fundamental da relação entre transcendência religiosa e secularização civil[3]. De facto, esta simplificação origina excessos de ressentimento “fundamentalista” por parte da crítica racional e política frente à religião, que não contribuem para a cultura da democracia e do diálogo.

11.  No âmbito da cultura teórica e crítica do racionalismo ocidental, o cristianismo é que é preferentemente analisado como caso exemplar da inclinação despótica do monoteísmo religioso. Em semelhante perspectiva, as qualidades do cristianismo que inspiraram também a melhor cultura humanista ocidental são esquecidas e ignoradas pela geral interpretação da fé como renúncia à liberdade de pensamento e fanatismo da identidade.

12.  A constante e pertinaz identificação do cristianismo católico como o obstáculo a abater, na luta contra o monoteísmo que difunde a violência religiosa no mundo não deixa, todavia, de causar espanto e surpresa. O cristianismo é, desde há muito, a religião que deveria ser mais bem conhecida na moderna cultura ocidental e, por isso, esta deveria ser aparentemente a última a ser suspeita de ignorância em face dos factores fundamentais do cristianismo. A original e inédita conjunção do amor de Deus e do amor do próximo, ancorada metafisicamente, e não de modo retórico no dogma da incarnação do Filho de Deus para a redenção e reconciliação dos homens foi sempre – e continua a ser – uma pedra angular da teologia cristã. É difícil ignorar esta diferença em boa fé. Ela persistiu como a cifra identificadora do cristianismo em todas as épocas: um dado que, se torna ainda mais escandalosas as práticas deformadas, deve igualmente fazer reflectir sobre a sua milagrosa continuidade. O cristianismo coaduna-se com esse fundamento: pretender eliminá-lo ou também apenas redimensioná-lo seria alterar toda a sua narrativa fundadora e todo o seu fundamento dogmático.

13.  A modernidade ocidental alimentou-se também amplamente e serviu-se desta singularidade religiosa e da sua firme estabilidade no tempo, quando percorreu os caminhos – religiosa e filosoficamente inéditos – da dignidade pessoal de cada indivíduo e da igualdade entre os seres humanos. Não parece casual, de facto, que a animosidade da tomada de distância – e da polémica – em face do cristianismo, que hoje utiliza instrumentalmente a chave da sua redução (filosófica e política) ao estereótipo do monoteísmo violento, seja acompanhada de um enfraquecimento contextual, na própria conduta e atitude ocidental, do respeito pela vida, pela intimidade da consciência, pela salvaguarda da igualdade, pela paixão racional por um empenhamento ético partilhado e pelo respeito da autêntica consciência religiosa. A extenuação do Ocidente, sob o perfil dos laços sociais – deplorada como degradação dos valores partilhados ou saudada como preço da liberdade individual – é, de resto, objecto de um diagnóstico crítico amplamente convergente. O crescimento da conflitualidade no seio da conduta social difundida não pode deixar de ter alguma relação com este enfraquecimento do ethos civil, que se alimentava da solidez da fé cristã no ideal da proximidade.

14.  De facto, a denúncia arvorada contra o monoteísmo surge decerto mais transparente nas suas verdadeiras motivações quando se desdobra a partir das premissas de um ateísmo claramente professado, em defesa de uma concepção imanentista e naturalista do humano. O ateísmo civil, por outro lado – os mais atentos percebem-no claramente – deve, por seu turno, prover-se das necessárias cautelas filosóficas e também políticas. A experiência dos “ateísmos de Estado” permanece bem viva na consciência ocidental. De facto, mesmo se nos convencermos de que não existe um Deus perante o qual todos os homens são iguais, o horizonte do pensamento de Deus é, apesar de tudo, tão indispensável à consciência humana que ele, “esvaziado” do seu legítimo ocupante, permanece à disposição do delírio de omnipotência do homem. Alguém ou até algo (a raça, a nação, a facção, o partido, a tradição, o progresso, o dinheiro, o corpo, o gozo) acaba por ocupar o lugar deixado vazio por Deus. A revelação bíblica anuncia-o e a história demonstra-o: o homem hostil ao Deus bom e criador, na obsessão de se “tornar como Ele”, converte-se num “Deus perverso” e depravado em face dos seus semelhantes. Do politeísmo destas contrafiguras narcisistas do “Deus perverso”, que dimana do pecado desde a origem, nada pode vir de bom para a pacífica convivência entre os homens.

4. A responsabilidade atribuída à nossa fé

15. Nesta nossa exposição permaneceremos fiéis aos limites indicados da nossa posição, que visa a ilustração do sentido autêntico da confissão cristã do único Deus. Nós, teólogos cristãos, estamos, por outro lado, conscientes de termos efectivamente realizado, com todos os crentes, um longo caminho histórico de escuta da Palavra e do Espírito para purificar a fé cristã de toda a ambígua contaminação com as potências do conflito e da sujeição. E estamos muitos conscientes da nossa obrigação constante de apelar para a mais escrupulosa vigilância em face do perigo sempre recorrente, que a degradação da paixão da fé no espírito de domínio representa para o autêntico testemunho evangélico[4]. A conversão não é apenas uma decisão inicial, é um estilo de vida. Mas podemos testemunhar, com toda a firmeza e humildade necessária, que a radical advertência perante o uso despótico e violento da religião pertence de um modo ímpar e absoluto ao núcleo originário da revelação de Jesus Cristo: e representa um dos seus aspectos mais inauditos e emocionantes, na história da expectativa da manifestação pessoal de Deus e da experiência religiosa da humanidade. A confissão do facto de que o único Deus, Pai de todos os homens, se deixa histórica e definitivamente reconhecer justamente na unidade do supremo mandamento do amor, a cujo respeito os próprios discípulos do Senhor aceitam ser julgados, ilumina a autêntica fé no Único Deus que pretendemos professar. Ela anuncia e pratica com todas as suas forças a unidade de origem, de caminho e de destinação do género humano, em vista da redenção e da consumação oferecidas por Deus. Toda a visão do mundo que exclui esta suprema unidade do mandamento – apresente-se como religião ou como irreligião – é invenção dos homens. E nada salva. É, sem dúvida, tarefa e incumbência do cristianismo tornar rigoroso e credível o seu testemunho desta verdade salvífica do Único Deus. É a propósito deste núcleo da revelação do Filho, hoje mais do que nunca essencial, que desejamos confirmar a fé. E é à esperança que daí promana para a reconciliação dos homens, apesar da interessada hostilidade das potências mundanas, que desejamos restituir pensamento e confiança.

16. A oposição da revelação de Jesus ao perfil de uma religião que induz separação e aviltação entre os seres humanos é um traço profundo da originalidade da fé cristã, que aqui queremos explicitar. Ele representa um tema de anúncio decisivo, para a esperança em Deus da humanidade inteira. E é um princípio de incomensurável alcance para a redenção de uma religião que queira ser “pura e sem mancha” (Tg 1, 27). A Lei, mesmo a mais santa, e a Profecia, mesmo a mais elevada, não bastam para combater a degradação de uma religião que se afasta da adoração de Deus “em Espírito e verdade” (Jo 4, 24). A pureza da religião, e da sua justiça, vem da fé em Jesus Cristo. “O sábado é para o homem”, não para si próprio (Mc 2, 27). E a profecia mais exaltante “nada vale sem o amor” (1 Cor 13, 2).

17. A unidade indissolúvel do mandamento evangélico do amor de Deus e do próximo estabelece e afere o grau de autenticidade da religião. Em toda a religião. E também em todo o pretenso humanismo, religioso ou não religioso. Os Evangelhos apresentam Jesus Cristo na unicidade da Sua relação pessoal com o Pai. N’Ele reconhecemos Deus, que se torna visível, justamente no momento em que contemplamos a perfeição do homem que corresponde intimamente à relação com Deus. Na sua paixão e ressurreição Jesus traz a redenção do pecado, restituindo ao homem, de modo não revogável e não superável – o acesso do amor de Deus. O autêntico anúncio de Cristo, a partir da narrativa evangélica da sua manifestação, é uma chave fundamental para a discussão hodierna sobre o monoteísmo e as suas falsas interpretações.

18. Na tradição da Igreja o princípio desta verdade cristológica de Deus nunca se perdeu, com o risco de pôr o cristianismo em contradição entre a sua práxis histórica e a sua autêntica inspiração, para estimular – não sem a dolorosa passagem pelo escândalo de práticas deformadas – a sua renovada conversão à pureza do seu fundamento. Consideremos também, honestamente, que o reconhecimento desta contradição originou, na época actual da Igreja, um salto irreversível de qualidade, na doutrina e na praxis, que agora é inseparável do futuro do cristianismo e também do ideal de uma religião autêntica. Por esse motivo, como teólogos cristãos e católicos, pensamos que este aprofundamento representa uma real oportunidade de repensamento da ideia de religião. É-o para as culturas seculares do Ocidente, tentadas pelo repúdio do cristianismo, e da religião, à custa da resignação ao niilismo. Sê-lo-á também para as religiões no mundo, de novo tentadas pelo fechamento sobre si próprias, e até atravessadas por horríveis presságios de guerra.


CAPÍTULO II
A INICIATIVA DE DEUS NO CAMINHO DOS HOMENS



1. A aliança com Deus, destinada a todos os povos

19. O monoteísmo, em sentido estrito, que representa um elemento essencial da religião de Israel entre as antigas religiões, definiu-se, na realidade, no termo de um longo processo histórico. Em termos teológicos, apresenta-se como fruto de uma revelação progressiva. Historicamente, o culto das tribos israelitas a JHWH, o Deus salvador que faz sair da escravidão do Egipto, parece ter convivido com outras formas de culto (Js 24, 16-24). Com o tempo, impôs-se gradualmente a forte exigência de uma “monolatria”, em correspondência com o “privilégio” que se deve conceder, em relação a qualquer outra figura divina, ao culto do Deus da libertação e da especial aliança com o povo de Israel. Embora o nome de JHWH seja conhecido e usado no período que antecede o Êxodo, Ele surge identificado com o “Deus pessoal de Israel” à luz da conexão entre os dois grandes acontecimentos fundadores da identidade teológica de Israel: a promessa feita a Abraão (Gn 12, 2-3.15) e a libertação do Êxodo (Ex 19-20). Por outras palavras, Israel conhece JHWH como Salvador do povo ainda antes de o reconhecer como Criador do mundo. O princípio desse conhecimento é a libertação de Israel da escravidão. Neste sentido, o Deus da Aliança espera, da parte do povo que Ele fez nascer e renascer, uma relação exclusiva de pertença e de amor: “Eu serei o teu Deus e tu serás o meu povo” (Ex 6, 6; Jr 31, 33). A existência de outros deuses, que são próprios de cada um dos outros povos não é por isso automaticamente negada. Israel, pelo que lhe diz respeito, está absolutamente certo de que a sua existência, a sua salvação, o seu futuro dependem exclusivamente de JHWH. “Todos os povos marcham cada um em nome do seu deus; quanto a nós, caminhamos apenas em nome de JHWH, o nosso Deus, exclusivamente e para sempre” (Mq 4, 5). Daí a afirmação da consciência de ter de reservar para JHWH um culto exclusivo. Esta exigência está claramente expressa em Dt 5,6-9: “Eu sou JHWH, o teu Deus, que te fez sair do país do Egipto, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim. Não farás imagens esculpidas de nada que se assemelhe ao que está no alto dos céus, ou debaixo da terra, ou nas águas. Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás. Porque eu, JHWH, o teu Deus, sou um Deus ciumento” (cf. ainda Ex 20, 3-5).

20. Graças à experiência do exílio, Israel compreende que JHWH, o seu Deus, lhe está de algum modo – e em toda a parte – próximo. A sua presença e a sua acção salvífica não estão limitadas a uma lugar determinado (a Terra prometida ou o Templo), mas são verdadeiramente universais. Esta ampliação corresponde ao emergir da doutrina da criação. O grande mistério, que progressivamente vem à luz, é justamente a percepção do facto de que o Deus de Abraão e do Êxodo é aquele que “no princípio... criou o céu e a terra” (Gn 1,1). No horizonte desta abertura (o Deus dos Pais e do Êxodo é o Senhor de todo o criado) Deus é Aquele que está destinado a ser conhecido – e reconhecido – pelos povos da terra como Deus da salvação para todos os homens. Israel compreende também que JHWH não se assemelha em nada aos deuses “das nações” . Estes surgem como deuses impotentes para dar a salvação: também àqueles que neles confiam: “Iludem-se, enganam-se os que transportam os seus deuses de madeira e rezam a um deus que não pode salvá-los. [...] (Is 45, 20b-22): cf. 1 Sm 5, 2-5; 1 Rs 18, 33-35). No termo desta lenta maturação, o Deutero-Isaías pode pregar o monoteísmo rigoroso que confessa e professa a unicidade absoluta de Deus e, por conseguinte, nega a existência dos outros deuses: “Assim fala JHWH, Deus de Israel, JHWH Sabaoth, o seu redentor: Eu sou o primeiro e o último e além de mim não existe outro Deus. Haverá um deus além de mim? [...] (Is 44, 6.8) Baruch exorta repetidamente o povo a não ter medo dos ídolos e a não ceder à sua sedução: “não tenhas medo, não são deuses” (Br 6, 14.22.28.64). O Livro da Sabedoria completa o processo, desvelando a origem puramente humana dos ídolos e dos falsos deuses: “Os ídolos não existiam na origem e jamais existirão; a superficialidade dos homens é que os fez entrar no mundo (Sb 14, 13-14). JHWH foi sempre, e para sempre permanecerá o único Deus.

21. A unicidade de Deus, criador do mundo, adquire o seu sentido “absoluto” contextualmente na abertura do sentido “universal” da sua oferta de salvação. Quanto mais se afirma o carácter “exclusivo” do laço de Deus com o antigo Israel, testemunha eleita do seu poder e do seu amor, tanto mais se acentua a destinação “universal” da sua aliança com a criatura. O fio desta destinação da revelação estava já entrelaçado com a antiga promessa feita a Abraão, no seio da qual “todas as nações da terra” estavam já abençoadas (Gn 12, 3); e resplandecia já no arco-íris, que selava simbolicamente a promessa feita a Noé, a favor de todas as criaturas da terra (Gn 9, 8), até se tornar o motivo dominante de uma verdadeira e genuína “escatologia da aliança”, que abre o tempo da expectação. Quando o povo, testemunha de Deus, receber um “coração novo” (Jr 31, 31s; Ez 16, 59), ao monte do Senhor “virão muitos povos”, pedindo ao “Deus de Jacob” que lhes indique e acompanhe os seus caminhos (Is 2, 3). Por fim, a grande profecia de Israel abre – e indica-nos – o horizonte do pleno afirmar-se da unicidade de Deus no cenário (messiânico, escatológico, apocalíptico) de uma definitiva conciliação entre os homens (cf. Is 66, 18-21). Quando Deus for reconhecido, entre todas as gentes, como o criador poderoso, o justo juiz e o salvador misericordioso de todos os homens, “ um povo já não levantará a espada contra outro povo” (Is 2, 4). Segundo Ezequiel, no “dia do Senhor”, todos “os habitantes das cidades de Israel sairão a queimar e a entregar às chamas as armas, os broquéis e os escudos, os arcos e as flechas, as lanças e os dardos; com tudo isso farão lume durante sete anos” e já não terão de ir procurar lenha nos campos e nos bosques (Ez 39, 9-10; cf. Sl 46, 8-10). Por último, o rei-messias do profeta Zacarias, que realizará o nome-símbolo de Jerusalém, será um rei de paz: “Ele é justo e vitorioso; vem, humilde, montado num jumento, sobre um jumentinho, filho de uma jumenta. Exterminará os carros de guerra da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; o arco de guerra será quebrado. Proclamará a paz para as nações” (Zc 9, 9-10). O esplendoroso senhorio do único Deus que acompanha Israel (Is 9, 1) abriu caminho ao longo da história mediante laços de amor que fizeram nascer um povo como testemunha a partir “do nada” (Is 41, 14), por meio do qual envolve na sua bênção todos os povos da terra (Is 65, 18-24). A grande atestação desta decisiva abertura encontra-se no Deus do Deutero-Isaías, com a sua impressionante antecipação do Servo de JHWH que leva a justiça a todos os povos (Is 42, 1-4), até aos confins da terra (Is 49, 6b). E não sem passar pela prova do martírio (Is 50, 4-9; 52, 13-53, 12).

22. A fé bíblica da aliança de Deus com o antigo Israel atesta, por fim, a singular escolha de Deus, criador e Senhor de todas as coisas: a de se dar a conhecer a todos os homens mediante a longa e quotidiana frequentação de um pequeno grupo humano, chamado a habitar, dia após dia, o caminho da justiça que reconcilia o ser humano com a vida de Deus. A fidelidade exclusiva reivindicada à testemunha desta revelação do Deus Único está destinada a fazer crescer na história a adesão da mente e o abandono do coração ao amor do único Deus.

23. Na sua exploração do mistério da Igreja, o Concílio Vaticano II empenhou-se no aprofundamento da relação da Igreja com o povo de Israel, através da referência explícita à tradição de Abraão como “início” da revelação do Deus único. A Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs recorda “o vínculo com que o povo do Novo Testamento está espiritualmente ligado à estirpe de Abraão”[5]. O valor desta realização singular da história salvífica do antigo Israel, na sua relação com a história dos povos e de toda a família humana, esteve sempre muito presente à consciência cristã. De modo exemplar, podemos mencionar duas grandes aberturas: Paulo, com a sua apaixonada teologia da vocação de Israel e com a sua audaz interpretação do ágnostos theós (o “deus desconhecido”) no Areópago de Atenas (cf. Act 17, 28); os Padres da Igreja com a sua fiel guarda do sentido permanente e pleno das Escrituras bíblicas, e com a sua luminosa teologia das “sementes da Palavra de Deus” reconhecíveis no mundo e na história[6]. Tal convicção, apoiada pela fé bíblica, não deixa de embater na experiência universal. Todas as grandes elaborações do pensamento deram incessantemente voz à busca do infinito, do absoluto, do mistério da origem e do enigma do destino. Não conhecemos, até agora, nenhuma civilização que tenha nascido e crescido fora desta característica dimensão do espírito, que é a busca de Deus.

2. Discernimento cristão da antiga revelação

24. A revelação de Deus, na formação do antigo Israel, abriu caminho no cenário das tensões, dos conflitos e até dos excessos violentos, que acompanham a história de todos os povos em demanda do seu destino histórico. A revelação, por outro lado, conhece igualmente todos os íntimos matizes e os tons fortes do amor, da amizade, do cuidado materno e até do eros passional.

25. De qualquer modo, o discernimento revela-se necessário também para a teologia cristã, por causa do valor de revelação autêntica que ela reconhece e concede às antigas Escrituras bíblicas. Comecemos por lembrar que a sumária oposição entre um Deus perverso “da ira e da guerra” e um Deus bom “do amor e do perdão”, tomada como chave hermenêutica discriminatória entre a revelação judaica (a repudiar) e a evangélica (a acolher), foi rejeitada desde os inícios da era cristã[7]. Foi sobretudo recusada, com firme determinação, a oposição radical entre um Deus mau do Antigo Testamento e um Deus bom do Novo Testamento. A rejeição – firme e imediata – deste dualismo surge de certo modo até como surpreendente, tendo em conta a aparente vantagem apologética que teria podido representar: quer para se libertar das incómodas páginas da “violência de Deus” que fazem parte da Bíblia, quer para marcar, em termos aparentemente resolutivos, a diferença da “nova religião” relativamente ao judaísmo. Com efeito, é sobretudo surpreendente que esta simplificação grosseira continue ainda hoje a ser utilizada no seio de certa apologética popular (e até na alta cultura).

26. As Sagradas Escrituras contêm, sem dúvida, páginas que permanecem também para nós, crentes, muito perturbantes e muito difíceis de decifrar. Alguns exemplos: Deus castiga o género humano com o dilúvio (Gn 6-7) e destrói Sodoma e Gomorra com o fogo. Deus inflige uma série de duras punições ao Egipto, que culminam com a morte dos seus primogénitos e com a aniquilação dos seus guerreiros (Ex 7-13). No período da conquista da Terra prometida ouvimos, mais vezes, ressoar a ordem de extermínio (anátema) de exércitos e de cidades inteiras (cf. Gn 6, 21; 8, 22-25; 1 Sm 15, 3). As formas de violência sacrificial, no contexto das guerras de conquista, surgem também como promessas feitas a Deus em vista do seu apoio para a vitória. O extermínio que se segue à vitória e a conquista é decerto uma prática sacrificial praticada também pelos outros povos. Como ainda os sacrifícios humanos propiciatórios, que estão presentes na própria história do antigo Israel (Lv 20, 2-5; 2 Rs 16, 3; 21, 6). Atesta-o justamente o facto de que, no último período profético, estas práticas, que a mesma releitura deuteronómica denuncia como típicas de Canaã (Dt 12, 31), são duramente condenadas (Mq 6, 6-8; Jr 19, 4-6).

27. As formas da violência que coimplicam directa ou indirectamente Deus, nas Escrituras bíblicas, são um tema complexo que se analisa com cuidado já no plano histórico-literário. A reescrita teológica dos acontecimentos, que visa acentuar a presença e o juízo de Deus na história, utiliza formas de “reconfiguração” narrativa, mais livres do que as nossas, para relatar a revelação da vontade divina nos sinais da história e nos projectos do povo. Noutros casos, os estereótipos da “prova”, da “cólera” ou do “juízo” de Deus sobre a fé do homem realçam o apelo à conversão e à fidelidade. Para a plena decifração teológica do tema da violência sagrada nas páginas bíblicas a reflexão teológica recorre tradicionalmente a dois critérios. Por um lado, a tradição teológica sublinha o carácter pedagógico da revelação histórica que deve abrir caminho num contexto de recepção duro e tribal, muito diferente daquele que plasma a nossa sensibilidade actual. Por outro lado, põe em relevo a historicidade da elaboração da fé atestada nas escrituras bíblicas, assinalando a evidência de uma dinâmica evolutiva dos modos em que a violência é representada e julgada: na perspectiva da sua progressiva superação, do ponto de vista da fé no Deus da criação, da aliança, da salvação. Estas linhas de clarificação contêm decerto, em termos gerais, um discurso de verdade. Por um lado, como o próprio Jesus recorda, também os intérpretes mais autorizados da palavra de Deus – a começar pelo próprio Moisés (Mc 10, 1-12) – permaneceram inevitavelmente condicionados por um quadro antropológico e cultural profundamente entrosado com o ethos – para nós insuportavelmente violento – de uma concepção arcaica-sacral da honra e do sacrifício, do conflito e da represália, da guerra e da conquista. Por outro lado, uma correcta hermenêutica histórica e teológica tem necessariamente em conta os estereótipos culturais e linguísticos das narrativas de revelação. A própria releitura bíblica das tradições, no seio das Sagradas Escrituras, reconfigura e discerne o significado teológico contido na história do testemunho, indicando claramente um processo de purificação da fé na Palavra de Deus. A obra da reconfiguração da memória, através do trabalho redaccional e da reelaboração retrospectiva da experiência, orientam o sentido da revelação para a sua síntese completa. E é a partir desse ponto que se deve indicar o sentido do processo inteiro. Nós próprios assimilamos, cada vez com maior clareza, à luz do evento de Jesus Cristo e da iluminação que o Espírito não cessa de oferecer à Igreja, a diferença que se deve reconhecer entre a autêntica doutrina da Palavra de Deus e os estereótipos linguísticos e culturais do mito, da cosmologia e da antropologia, da ética e da política, da religiosidade popular e do senso comum, em que – inevitavelmente – estes estereótipos transmitem, simplificando-a, a consciência da presença e da acção de Deus na história.

28. O sentido postremo da aliança de Deus com o antigo povo continua a ser a revelação da sua misericórdia e da sua justiça. Pense-se, por exemplo, no inspirado repensar da tradição deuteronomista acerca do sentido e da má compreensão da aliança com Deus, mais associada à qualidade da fé do que ao formalismo da lei; ou no contributo da tradição Profética em vista da crítica da auto-exaltação da instituição político-religiosa, que prejudica o primado da fé e a busca da justiça de Deus; ou ainda na imensa releitura da antiga experiência de Deus e da história de Israel, que a tradição da Sabedoria indaga na óptica da “aliança originária” de Deus com a vida do homem inscrita na constituição do “mundo criado”: abrem para o confronto da Palavra de Deus com a beleza e com o drama da universal condição humana.

Ao longo deste eixo, pode facilmente definir-se e reconhecer-se a centralidade da mensagem bíblica acerca do mistério do amor de Deus: que aceita fazer-se interlocutor do homem para o restituir à sua liberdade e tornar-lhe apreciável e valiosa a sua justiça. É impossível esquivar-se ao poder de Deus e à sua justiça: isto sabe-o cada religião. Deus quer ser livremente apreciado e responsavelmente correspondido: quer ser amado no livre dom de si, não de imediato como um poder inelutável do destino. O modo como o homem recebe a manifestação do seu poder e do seu amor faz parte da revelação. A fé em que ela é recebida e transmitida fala inevitavelmente na linguagem e nas imagens dos homens, à qual é impossível conter em perfeita transparência a verdade última do laço de amor e do pode em Deus. Persiste o facto de que a originalidade da Palavra de Deus, que herdamos das Sagradas Escrituras da revelação bíblica, deixa uma herança essencial e não equívoca. A palavra derradeira sobre a verdade do mistério de Deus na história do homem há-de deixar-se e confiar-se ao poder do amor. O crente bíblico sabe que não erra quando assim retoma a sua fé: mesmo quando não é capaz de decifrar pontualmente as palavras e os sinais.

29. De resto, o amor do poder nunca foi sequer a primeira palavra de Deus. Pelo contrário, foi a palavra da tentação e do delírio de omnipotência do primeiro Adão, que removeu a evidência da criação e contaminou para sempre – mas não de modo insuperável – a linguagem da humana teo-logia. Escreve S. Paulo: “Pois, embora vivamos numa natureza frágil, não lutamos por motivos humanos (en sarki 2 Cor 10, 3). As armas do nosso combate não são de origem humana (kata sarka, 2 Cor 10, 4), mas, por Deus, são capazes de destruir fortalezas. Destruímos os sofismas e toda a altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus e cativamos todo o pensamento para o conduzir à obediência a Cristo” (2 Cor 10, 3-5). Numa passagem como esta (e outras afins: cf. Ef 6, 10-17) está bem documentada a definitiva conquista de uma mudança de linguagem que decide a interpretação cristológica do conflito que põe em causa a religião. Esta viragem é, de resto, como que prefigurada pelo fruto maduro da antiga profecia. A cena do drama é doravante toda a história do pecado no mundo: por meio do qual as potências malignas que nos dominam obscurecem a justiça de Deus, derramando o sangue dos homens e alimentando hostilidades entre os povos. A luta pela verdade de Deus contra a incredulidade dos homens e o pecado do mundo consiste no próprio acto do anúncio do amor, que muda a realidade da história mediante o testemunho vivido da fé. A resposta da fé à violência humana liberta-se assim do equívoco de uma violência religiosa que pretende antecipar o juízo escatológico de Deus. Por outras palavras, não pode tornar-se – sem se contradizer gravemente – guerra de religião entre os homens e violência homicida em nome da fé.

30. Não estavam, por isso, tão longe do justo juízo os Pais da nossa fé quando se empenhavam – embora com algum excesso da alegoria – a interpretar, na “figura” dos antigos incitamentos divinos à luta contra os inimigos, a “verdade” escatológica do apoio de Deus na luta contra as potências do mal, que importunam e asssediam a paz com Deus e entre os homens[8]. Vale a pena, no entanto, completar estas reflexões com algumas ulteriores precisões que sugerem também necessários aprofundamentos.

3. Praticar o amor, observar a justiça

31. A evolução moderna da diferença entre religião e política – decerto propiciada pela cultura do cristianismo – é igualmente um processo de maturação hermenêutica no interior da leitura da revelação. Apesar de tudo, a enigmática palavra de Jesus acerca do Reino “que sofre violência”, e no qual se entra com um “acto de força” (cf. Mt 11, 12), adverte-nos sobre o facto de que o amor permanece exposto à violência. No fim de contas, seria também preciso afastar-se da aparente sensatez de uma cultura que censura toda a paixão pela sua justiça como propensão à violência. As palavras da fé bíblica, que se deixam instruir pelas metáforas do “ciúme” de Deus pelo seu povo (de certo modo retomadas pelo “zelo” da casa de Deus a que alude o gesto simbólico de Jesus, cf. Jo 2, 17; cf. Sl 69, 9), não devem esvaziar-se de todo o significado. Por último, a sua hermenêutica mais comovente pode captar-se no seio da própria Bíblia, no instrutivo diálogo entre Deus e Abraão (Gn 18, 18-22), que intercede por um povo que nem sequer é o seu; ou entre Deus e Moisés (Ex 32, 32), que rejeita a oferta de ser separado do povo rebelde.

32. O amor autêntico não se confunde, pois, com a falta de coragem, nem se aponta como irresponsável ingenuidade de todo ignara da dialéctica do Espírito e da força. As narrativas de vocação, como as de Abraão (Gn 12, 1-3), Moisés (Ex 3, 1-10) e Jeremias (Jr 1, 4-10), instruem-nos do modo mais eloquente acerca do perfil “forte” das histórias de amor do crente com Deus, a favor dos homens. A dialéctica da obediência e da liberdade que empenha a testemunha é uma dramática séria, e de alto perfil, na lógica do amor de Deus. Por fim, muitas parábolas do Reino, e igualmente as representações simbólicas da escatologia neotestamentária, recordam-nos que, embora tenhamos de deixar à justiça de Deus a derrota da violência pecaminosa do homem contra o homem, o juízo e a vitória do amor de Deus se apresentam também sempre no horizonte de um acto do testemunho que resiste, com a força do Espírito, à injustiça da história: confirmando a irrevogável consumação e realização da justiça de Deus. O amor – que, até ao último dia, abre o caminho da conversão e da misericórdia, à custa da sua própria vida – mantém assim a sua promessa para o povo das Bem-aventuranças disseminadas entre as gentes. E abre, com o seu poder, o lugar e o tempo do resgate e da protecção de Deus para as vítimas da violência prevaricadora (Ap 21). O seu abandono julgará os povos (Mt 25).

33. Uma justiça de Deus sem amor ressoa sempre como uma condenação inevitável para o homem pecador. Sê-lo-ia também uma promessa do amor de Deus sem a resolutiva eficácia da sua justiça, que abriga definitivamente a vítima das potências mundanas pela violência que sofreu[9]. A nossa cultura corre, sem dúvida, o grave risco de uma drástica separação entre o amor e a razão, e também entre o amor e a justiça. Esta dupla separação alimenta-se de uma retórica muito sedutora, que se arrisca a legitimar o esmagamento do outro como a tendência perfeitamente natural da afirmação de si. E induz ainda, por outro lado, uma grave confusão entre a não-violência do amor e o abandono do outro à injustiça.

34. O primado teologal do amor, que desvaloriza radicalmente a violência religiosa (da qual essencialmente aqui falamos), não é uma alternativa – mais ainda, é um encorajamento – à busca de boas políticas do direito e da justiça (das quais aqui não nos ocupamos[10]). A difusão de uma certa cultura radical conduz à suspeita frente a toda a figura da autoridade e da lei consideradas como formas mascaradas de perversão e manipulação, sempre inaceitáveis. O correspondente simétrico a este fundamentalismo crítico é uma retórica sentimental do amor que se subtrai a todo o juízo ético e a todo o empenhamento sério com a justiça. Esta dupla simplificação é de fácil conquista demagógica e alimenta um conformismo da liberdade hostil a toda a responsabilidade e a toda a vinculação. Incrementa decerto o nível de tolerância e de resignação perante a violência difundida, que aumenta o risco de todos.

35. O nosso empenhamento específico, como crentes, continua a ser, acima de tudo, o de invocar o Espírito e a força essenciais ao anúncio da justiça do amor de Deus: detendo o ressentimento da injustiça e aceitando o risco do testemunho[11]. A firmeza da oposição religiosa à violência deve recusar – precisamente enquanto tal – a justificação teológica de toda a forma de perversão. Nesta fase histórica, a evidência desta contraposição torna-se um factor de primeiro plano para o discernimento acerca da qualidade da experiência religiosa.

4. A fé no Filho, contra a inimizade entre os homens

36. A tradição da fé bíblica, de acordo com a sua vocação originária, abre o horizonte da salvação de Deus para todos os homens. É este o tema fundamental sobre o qual a fé cristã instaura o seu diálogo com todas as épocas. O sentido autêntico desta abertura é selado no evangelho do Filho Crucificado que torna para sempre contraditória a violência entre os homens “em nome de Deus”. O próprio cristianismo, em virtude da palavra e da acção de Deus que continuamente o incita e solicita, é reconduzido sempre de novo à fidelidade deste significado da verdadeira fé no Deus único. A oposição da fé ao ódio religioso encontra a sua força no testemunho da sua derrota em Jesus crucificado (1 Cor 2, 2). A história da salvação brota da iniciativa de Deus para o homem. O próprio Deus torna possível o nosso encontro com Ele. A própria fé faz parte do dom. Na disposição ao testemunho, a fé cristã anuncia o Senhor Jesus Cristo a cada homem. Desta fé ninguém é “senhor” (2 Cor 1, 24), e todos os discípulos são “servos” (Lc 17, 10). A tendência para transformar a graça da eleição em privilégio étnico ou preconceito sectário deve ser combatida e vencida.

37. O cristianismo explicitou o sentido universal da relação de reconciliação que, na morte de Jesus, se estabelece entre Deus e a história do homem[12]. Todos são pecadores (Rm 5, 12), todos se devem deixar reconciliar com Deus (2 Cor 5, 20). Quando nós próprios éramos “seus inimigos” (Rm 5, 10), o Filho morreu pelo pecado de todos, para que todos fossem libertos do pecado (Rm 8, 32; 1 Cor 15, 3).

38. O crente cristão, ao preservar a fé nesta revelação, aceita entrar no mistério do Corpo de Cristo: no qual a inimizade entre os homens é combatida e vencida no sacrifício de si. O discípulo deve estar pronto a honrar o seu apelo, completando “o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Cl 1, 24). De facto, é à plenitude do único Deus naquele único Corpo que a Igreja vai buscar o seu caminho, a sua vida, a sua verdade. Na morte de Jesus Cristo torna-se definitivamente claro que a luta não é entre os povos: pela supremacia de uma etnia sobre a outra, de uma cultura sobre a outra, de uma religião sobre a outra. A nossa luta, na realidade, “não é contra os seres humanos…, mas contra os Principados, as Autoridades, os Dominadores deste mundo de trevas, e contra os espíritos do mal que estão nos céus” (Ef 6, 12). E oportunamente o Apóstolo conclui: “Mantende-vos, portanto, firmes, tendo cingido os vossos rins com a verdade, vestido a couraça da justiça e calçado os pés com a prontidão para anunciar o Evangelho da paz” (6, 14-15). O povo testemunha edifica-se a partir de todas as nações, na fé em Jesus Cristo: ou seja, segundo o Espírito, e não segundo a carne. Na ekklesia tou theou Deus fez doravante “dos dois” – o povo da aliança e as nações da terra – “um só povo”. Doravante, quem está unido a Deus em Jesus Cristo não está separado de ninguém. Na sua carne, por meio da cruz, Jesus destruiu em si mesmo toda a separação do homem em relação a Deus. Deste modo, derrubou o muro da inimizade entre os herdeiros da promessa de Deus e todos aqueles a quem a promessa da salvação está destinada, graças ao Cristo de Deus crucificado (cf. Ef 2, 14-16). Sobre este ponto, que é crucial para a relação entre monoteísmo e messianismo, a tradução paulina da prática e da pregação de Jesus é transparente. O acesso à salvação do único Deus já não sofre excepções de pessoa segundo a carne (a proveniência, a cultura, a história).

39. Na esteira desta revelação, o cristianismo mantém firme a sua convicção da possibilidade, para cada homem, de encontrar Deus[13]. Em virtude do evento de Jesus Cristo, cada homem que crê na justiça de Deus e pratica a justiça entre os homens, pode encontrar a salvação, seja qual for o povo ou a nação a que pertence (Act 10, 34-36). O discípulo de Cristo – a Igreja – confirma a amizade de Deus, que se revelou na carne do Filho, a quem desejar adorar Deus em espírito e verdade.

40. Persiste o facto de que a impensável excedência cristológica da aliança de Deus com o homem, que conflui na encarnação de Deus num homem, por amor do homem, surge também como um excesso da graça difícil de acolher, no seio de um pensamento elevado e rigoroso da transcendência de Deus. Nós próprios, com o olhar fixo em Jesus e em humilde frequentação do testemunho dos discípulos, devemos cada dia interceptar a voz do Pai e a instrução do Espírito: para por Ele sermos apoiados na confissão da inaudita verdade de Jesus como Senhor da história e Filho eterno (cf. Mt 17, 5). Sem ferir e lesar de algum modo o pensamento da unidade e da unicidade de Deus, que as tradições religiosas crescidas na senda da fé de Abraão pretendem justamente preservar.

41. A abertura do pensamento trinitário de Deus, em que se desdobra a revelação da intimidade do Filho com o Pai, que a nós se comunica no Espírito, pode de muitos modos ser mal interpretada como uma degradação virtualmente politeísta da unicidade de Deus. Não só o Judaísmo, mas sobretudo o Islão, porfia e insiste neste mal-entendido, considerando-o, de certo modo, insuperável. Apresentam ainda esta reserva muitas filosofias religiosas seriamente empenhadas no pensamento do absoluto divino. Longe de subvalorizar a seriedade deste risco, a teologia cristã não ignora ter chegado a noções essenciais para um autêntico pensamento do ser divino, a partir de uma tradição filosófica que se mostrou particularmente hospitaleira e acolhedora da concepção da transcendência e da unidade (unicidade) de Deus radicalmente pressuposta pela tradição do monoteísmo bíblico. A teologia cristã pode, por seu turno, recordar também que a formação da doutrina sobre Deus, nos primeiros séculos da era cristã, esteve particularmente empenhada no aprofundado e escrupuloso exame das possíveis más interpretações do pensamento “trinitário”: justamente com o fito de excluir a corrupção da fé na unidade/unicidade de Deus.

42. A encarnação do Filho e a missão do Espírito revelam o mistério último da unidade de Deus como amor. Na relação Deus “não se perde”, precisamente porque Deus “se encontra” na relação. A clarificação da confissão cristã no Deus único, tornada particularmente necessária no contexto da actual discussão com as ideias filosóficas sobre Deus e as tradições religiosas do monoteísmo, sugere, pois, a continuação e o prosseguimento da nossa reflexão.


CAPÍTULO III
DEUS, PARA NOS SALVAR DA VIOLÊNCIA



1. Deus Pai salva-nos pela Cruz do Filho

43. O Deus único é, em primeiro lugar, Pai de todos os homens. A palavra da antiga profecia já o prefigura: “Porventura, não temos nós todos um único pai? Não foi o mesmo Deus que nos criou? Por que razão, pois, somos nós pérfidos uns para com os outros, profanando a aliança de nossos pais?” (Ml 2, 10). Mediante o envio do Filho na carne e por meio do dom do Espírito, esta paternidade de Deus Pai estende-se a todos os homens, cuja salvação Ele deseja (cf. 1 Tm 2, 4), na aliança definitivamente selada pela encarnação e pela Páscoa do Senhor. “Mas, quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adopção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: "Abbá! - Pai!” (Gl 4, 4-6; cf. Rm 8, 15).

44. A revelação trinitária do Deus único está intrinsecamente ligada à oferta, feita a todos os homens[14], de serem redimidos no mistério pascal de Jesus Cristo, a fim de participarem na relação filial de Jesus perante o Pai, por meio do dom do Espírito Santo, e poderem ser acolhidos entre os membros da única Igreja de Cristo, que reúne e congrega os filhos de Deus “desde Abel” – como diziam os antigos Padres da fé[15] – até “ao mais pequenino” entre todos aqueles que aguardam o regresso do Senhor no fim dos tempos.

45. No seu sacrifício pascal, o Filho, Cristo Jesus, tomou literalmente sobre si a violência do pecado e o sofrimento dos homens. “Ele levou os nossos pecados no seu corpo, para que, mortos para o pecado, vivamos para a justiça: pelas suas chagas fostes curados” (1 Pe 2, 24-25). A violência é o fruto do homem pecador e atinge o próprio Deus: não na sua divindade, mas nos dons do seu amor. Atinge-o no coração da paz que Ele quer entre os homens, atinge-o no próprio corpo do Filho. A antiga doutrina cristã, com assombro e admiração, proclamou solenemente a impressão desta revelação, que leva além do limite do pensável a antiga profecia do Servo sofredor do Deutero-Isaías (52, 13-53, 12): “Aquele que foi crucificado na carne […] é um da Trindade”[16]. Unus de Trinitate passus est. Na morte de Jesus, em que o próprio Filho sofreu a violência do “pecado do mundo”, que corrompe toda a religião e obscurece toda a compaixão, está de algum modo oculto – e por isso mesmo revelado – o mistério da “salvação do mundo”. O nosso pecado e o nosso mal estão sepultados com Cristo, a nossa cura e a nossa redenção ressurgem com Ele. Na sua morte e na sua ressurreição, Ele rompe o círculo do nosso destino de criaturas mortais e abre o caminho da nossa destinação à própria intimidade de Deus[17].

46. O acontecimento da Cruz, que manifesta a amor de Cristo pelo Pai e pelos seus irmãos e irmãs (Rm 5, 5-8) até à consumação perfeita (Jo 13, 1), está no centro da boa nova. O ingente acontecimento em que o Filho de Deus foi “foi ferido por causa dos nossos crimes, esmagado por causa das nossas iniquidades” (Is 53, 5), permanece para todos os séculos. Como escreveu o beato John Henry Newman: “Não foi – não podia ser – um simples acontecimento da história do mundo [...]. Se este desmesurado evento foi aquilo que nós cremos, o que sabemos que foi, então deve permanecer presente, apesar do seu ser passado: deve constituir um facto que deve permanecer actual em todas as épocas”[18].

47. A tradição da fé, sobre o fundamento da revelação feita em Jesus e confiada aos Apóstolos, reconheceu no acontecimento da “morte de Cristo”, ao mesmo tempo, a trágica verdade do excesso do pecado, do qual só Deus nos pode salvar, e a exaltante verdade do excesso da graça, em virtude do qual só Deus pode ir além do abismo do mal, sem se deixar contaminar pelo”pecado do mundo” (cf. Jo 1, 29) e sem diminuir o seu “amor pelo mundo” (cf. Jo 3, 16-17). É necessário, para a mesma fé cristã, entender sempre de novo, e em profundidade, a revelação desta morte (cf. 1 Cor 2, 7-8) que o cristianismo confessa como o fundamento da redenção que subtrai o género humano à impotência perante a sua história de perdição (cf. Fl 2, 6-11). Falamos, naturalmente, de uma compreensão que, de algum modo, pode aclarar o mistério da liberdade de Deus do qual provém a encarnação redentora do Filho: mas trata-se sempre de um acontecimento cujo mistério está oculto “com Cristo” em Deus (cf. Cl 3, 3; Ef 3, 8-12). E todavia, o mistério está inscrito na história de acontecimentos que “os nossos olhos viram, os nossos ouvidos escutaram, as nossas mãos apalparam” (cf. 1 Jo 1, 1-3).

2. A superação da violência no Filho

48. Na perspectiva sintética da nossa reflexão, desejamos oferecer, antes de mais, nas considerações que se seguem, uma chave útil de acesso à manifestação deste mistério segundo a memória evangélica. Fazemo-lo atendendo directamente ao aprofundamento do nexo entre revelação, religião e violência, que se deixa perceber no gesto da auto-entrega de Jesus. No acto inaugural de tal entrega – no Jardim das oliveiras – Jesus proíbe duramente aos discípulos análoga reacção violenta, justamente enquanto os subtrai à forçada auto-implicação na sua condenação (“Jesus disse a Pedro: Mete a espada na bainha. Não hei-de beber o cálice de amargura que o Pai me ofereceu?”, Jo 18, 11). Eles próprios, quando chegar o momento de honrar a livre obediência da fé, abandonar-se-ão às consequências do seu fiel testemunho (“bebereis o meu cálice”, Mt 20, 23).

49. Jesus entrega-se a si mesmo e não os seus discípulos. Ao mesmo tempo, retira espaço a uma alternativa igualmente dramática e aparentemente insuperável. Ou redimensionar a altíssima pretensão da sua revelação, ou aceitar o conflito cruento com a parte hostil. No primeiro caso, trata-se de renunciar à obediência da verdade recebida do Abbá-Deus; no segundo, de aceitar a lógica da guerra religiosa. Em ambos os casos o evangelho seria revogado. Jesus liberta-se do embaraço desta alternativa, optando por pôr nas mãos de Deus o destino da sua revelação e confirmando a sua irrevogável fidelidade ao evangelho da justiça de Deus: o qual “não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva” (Ez 18, 23-52; 33, 11). O Senhor Jesus, que advertira os discípulos sobre aquilo que o Filho espera dos que decidem segui-Lo (“Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”, Mt 16, 24), na hora extrema do perigo põe-se no meio e afasta-os (“Jesus replicou-lhes: Já vos disse que sou Eu. Se é a mim que buscais, então deixai estes ir embora”, Jo 18, 8). O Filho, que tinha duramente desmascarado a parte violenta dos seus opositores religiosos (“Agora, porém, vós pretendeis matar-me, a mim, um homem que vos comunicou a verdade”, Jo 8, 40), no próprio momento da sua morte insta com o Pai para suspender o juízo (“Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem”, Lc 23, 34).

50. Jesus anula radicalmente o conflito violento que ele próprio poderia encorajar, em defesa da autêntica revelação de Deus. Confirma assim, de uma vez por todas e para sempre, o sentido autêntico do seu testemunho relativamente à justiça do amor de Deus. Esta justiça não se cumpre mediante a legitimação da violência homicida em nome de Deus, mas por meio do amor crucificado do Filho a favor do homem (cf. Rm 8, 31-34)[19]. No gesto da entrega de si ao supremo sacrifício, que poupa o sangue dos discípulos e dos opositores, refulge o poder radical do amor de Deus. “O centurião que estava em frente dele, ao vê-lo expirar daquela maneira, disse: Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!”, Mc 15, 39).

51. Não há semelhança entre o poder do pecado e o da graça; não há afinidade entre a obsessão do poder, que perverte também a religião, e a força da fé, que vence o mundo; (1 Jo 5, 4; Jo 16, 33). Não só o poder redentor da graça supera a força destrutiva do pecado, mas a sua eficácia opera sob um signo radicalmente diferente. O pecado celebra o seu domínio aumentando o seu poder mundano com sacrifícios humanos, a graça barra o caminho à multiplicação da violência: poupa o sangue do outro, oferecendo-se a si mesma em sacrifício de amor. A verdade da revelação de Deus é, em Jesus, subtraída ao imemorável dispositivo da represália em nome de Deus. O evento cristológico falsifica – na raiz – todo o apelo à justificação religiosa da violência, justamente ao querer impor a Deus que a confirme. O Filho, no seu amor pelo Pai, atrai a violência sobre si, poupando amigos e inimigos (ou seja, todos os homens). O Filho, que arrosta e vence a sua morte ignominiosa, preparada como demonstração da sua impotência, aniquila num só acto o poder do pecado e a justificação da violência. Por meio do Espírito podemos, por nossa vez, honrar o dom recebido (cf. Ef 2, 18), realizando e completando em nós próprios “o que falta” à paixão do Filho (Cl 1, 24).

52. A esta luz é possível compreender melhor também o sentido autêntico das fórmulas em que a tradição da fé cristológica preservou a profundidade e o significado universal do vínculo entre a morte do Senhor e a redenção do homem. A palavra do credo cristão sobre o sangue do Filho que nos redime ilumina-se, na sua exactidão, mediante a contemplação do gesto do Filho que evita o derramamento de sangue de uns contra os outros.

53. A purificação das categorias religiosas tradicionais do sagrado, que se afirma nesta revelação, encontra-se já inteiramente ilustrada por um dos mais antigos escritos da sua tradição neotestamentária. A Carta aos Hebreus concentra-se no sacrifício de Jesus, em virtude do qual Cristo se manifesta como o único e eterno Sumo-sacerdote. Cristo entra no “Santo dos Santos” de uma vez por todas [...] com o seu próprio sangue” (9, 12), oferece-se a si mesmo e carrega sobre si os pecados de todos (9, 28). O sumo-sacerdote, aqui, oferece-se a si mesmo como vítima da violência dos homens. O Cordeiro sacrificial, aqui, é o Inocente que responde à violência com a mansidão, ao ódio com a bondade, à agressão com o perdão. Não busca vingança sobre os seus agressores, antes oferece-se a si mesmo com “fortes gritos e lágrimas” (Heb 5, 7). O coração trespassado do Filho vaza de si mesmo a violência que dá a morte, transformando-a no dom total da vida (cf. Jo 19, 33-37). Estava escrito na antiga profecia: “... Ele, o justo, justificará a muitos, porque carregou com o crime deles [...] porque ele próprio entregou a sua vida à morte, e foi contado entre os pecadores, tomando sobre si os pecados de muitos, e sofreu pelos culpados (Is 53, 11-12). É a partir daqui que se há-de compreender literalmente o sentido da palavra cristã “agape”: em nome de Deus, o verdadeiro crente oferece a Deus a sua vida (cf. Rm 12, 1).

3. A carne do homem, destinada à glória de Deus

54. O Ressuscitado, ingressado já na sua glória “à direita do Pai”, “pode agora salvar perfeitamente os que por meio dele se aproximam de Deus” (Heb 7, 25). Mediante a graça da adopção filial, os homens são no baptismo associados a Cristo morto e ressuscitado (Rm 6, 1-12), incorporados em Cristo (cf. 1 Cor 12, 27) e obtêm na esperança a herança da vida eterna (Tt 3, 7). Esta incorporação em Cristo é conformação com Ele, na comunhão com os seus sofrimentos, para alcançar a sua própria ressurreição (Fl 3, 10-11). As narrativas da instituição da Eucaristia põem concordemente em evidência a passagem através da nova Páscoa do Senhor. “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22, 19; 1 Cor 11, 25). Jesus dá-se a si mesmo e, além disso, torna sempre actual, para todos nós, o seu próprio dar-se. Este acontecimento ilumina-se na perspectiva do evangelista S. João, que interpreta o realismo sacramental da Eucaristia por meio do discurso de Jesus sobre o” pão da vida”: o pão que Ele dá é a sua carne “para a vida do mundo” (Jo 6, 51). “Assim como o Pai que me enviou vive e Eu vivo pelo Pai, também quem de verdade me come viverá por mim” (Jo 6, 57). O Filho encarnado recebeu do Pai, sem medida, o seu Espírito (cf. Jo 3, 34). Desde o momento da sua concepção como homem no seio de Maria é o Cristo, o Ungido do Espírito Santo (cf. Mt 1, 20: Lc 1, 35). No momento solene do Seu baptismo, o Espírito Santo sela o seu destino como Messias e Servo[20]. E no mistério da sua Ressurreição, a humanidade santa de Jesus Cristo, liberta de toda a violência, é plenamente glorificada (Act. 3, 13). A plenitude de santidade, de conhecimento e de amor de Deus que cumulam a alma humana de Jesus reflectem-se no seu corpo ressuscitado, o qual compartilha já a glória divina para nos tornar participantes do seu Espírito. “E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cristo de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 11).

55. Em Jesus sentado à direita do Pai – donde nos é enviado o Espírito da vida nova – a carne do homem mortal é transfigurada na vida bem-aventurada da Trindade. “Cristo, ressuscitado de entre os mortos, já não morrerá; a morte não tem mais domínio sobre Ele” (Rm 6, 9; cf. Act 13, 34). A sua vida “vive para Deus” (Rm 6, 10). Mediante a sua Ascensão, Cristo é estabelecido “no trono celeste na sua qualidade de Deus e Senhor... segundo Ef 4, 10”[21]. Elevado junto do Pai, na comunhão divina do Espírito Santo, Cristo não perde a sua condição humana. Mais ainda, “ao ser o primeiro a entrar no Reino, dá aos membros do seu Corpo a esperança de se unirem a Ele”[22]. O laço entre Deus e o homem em Jesus Cristo – posto à prova pela violência infligida “em nome de Deus” – permanece irrevogável e sai vitorioso da prova. Selado com sangue, ele põe – “em nome de Deus” – um limite insuperável à violência, a favor de toda a história humana. A contradição entre os dois sinais opostos do “nome de Deus” fica definitivamente ligada à história. Não há filosofia que consiga remediar a nossa milenária impotência de amor, nem religião que consiga conceber esta desmesura do amor de Deus (cf. Ef 1, 18-21). E nós próprios, que reconhecemos este mistério oculto em Deus desde o início da criação do mundo (cf. Ef 3, 5-12), não podemos reconhecer a verdade desta conciliação de Deus, querer a sua realização em nós, excepto na graça do Espírito, que nos guia e leva a compreender a sua manifestação em Jesus crucificado e apoia a nossa comunhão com o Senhor ressuscitado.

56. A fé no Deus-Trindade, que se pode iluminar inteiramente a partir do acontecimento cristológico da redenção do homem e da comunhão com Deus (cf. 2 Cor 13, 13), é portanto radicalmente inclusiva da reconciliação do homem com Deus e em Deus. O agir de Deus que nos liberta do mal e da violência encontra o seu fundamento no ser trinitário de Deus. Para a fé cristã, a doutrina da libertação e da salvação dos homens sobrepõe-se exactamente com a doutrina do Deus-Trindade.

57. A acção de Deus no mundo e na história dos homens (a “economia divina”) é a nossa única via de acesso ao mistério de Deus-Trindade. Não há duas economias: uma especial e privilegiada para os cristãos, e outra mais vaga e genérica para os não cristãos. Há uma só oikonomia em que a salvação é oferecida a todos os homens nos mistérios da carne de Cristo Jesus e do dom do Espírito que ensina a dizer Abbá-Deus. “O fim último de toda a economia divina é o ingresso das criaturas na unidade perfeita da Bem-aventurada Trindade”[23]. Mediante o amor de Deus que nos amou primeiro (1 Jo 4, 19) ou seja, por meio do Espírito Santo (cf. Rm 5, 5) que faz de nós filhos de Deus virados para o Deus-Abbá (Rm 8, 15), a verdadeira vida realiza-se desde agora no amor fraterno: “Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos” (1 Jo 3, 14). Aqui se revela plenamente a vocação dos homens ao seguimento de Cristo: participar na própria vida da Trindade, viver de Deus e em Deus (cf. 1 Jo 3, 24; 4, 13.16), no próprio vínculo que Jesus, o Filho, instituiu com cada homem na sua própria carne mediante a sua encarnação[24].

58. Só podemos manter firme a verdade deste mistério da condescendência evangélica de Deus, que nos liberta da aparente necessidade de salvar a nossa vida destruindo a vida do outro, invocando – nós próprios – a graça de podermos crer firmemente na justiça do amor de Jesus Cristo. Sem esta graça, não podemos conciliar-nos interiormente, com a “altura e a profundidade, a extensão e a largueza” deste irrevogável nexo do amor de Deus e do próximo. Por fim, não podemos conferir realidade à feliz realização que uma vida liberta do mal e da morte, a não ser no Filho, que conferiu realidade a esta destinação da nossa vida.

59. No mistério trinitário de Deus há “lugar” e “duração” para a vida eterna da criatura (“Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, como teria dito Eu que vos vou preparar um lugar? E quando Eu tiver ido e vos tiver preparado lugar, virei novamente e hei-de levar-vos para junto de mim, a fim de que, onde Eu estou, vós estejais também” (Jo 14, 2-4). Na guarda da palavra e dos gestos do Senhor (Lc 2,19), na fidelidade à entrega da sua paixão redentora (Jo 19, 25-27), na continuidade da graça e do testemunho do Filho até ao regresso do Senhor, a comunidade dos discípulos não pode deixar de reconhecer a presença e a acção da Mãe de Jesus. Maria inaugurou – de um modo único e irrepetível – a forma acolhedora do Corpo de Cristo, que é a Igreja[25]. Por meio da sua Assunção ao céu vive – alma e corpo – na glória da Santíssima Trindade. Na oração incessante pelos membros do Corpo do Filho sobre a terra, entre inumeráveis perigos e tentações, acompanha-os rumo à união final na vida da Trindade. A maternidade de Maria é a própria forma do seu vínculo especial com Deus, que a fé justa e audazmente formula com o título de “Mãe de Deus”. A passagem do Filho Unigénito, que se fez homem, através desta geração revela um traço da co-implicação de Deus com a forma humana do “vir ao mundo”, que deveria inspirar ainda mais profundamente o pensamento humano da intimidade de Deus e da sua afeição pelos filhos do homem. Desta inspiração, a Mãe do Senhor é a referência insubstituível e a fonte inesgotável (cf. Jo 2, 1-11).

4. A esperança dos povos, a fé da Igreja

60. A encarnação redentora do Filho introduz na história religiosa do homem uma transformação de incalculável alcance. A fórmula popular da catequese sintetiza, de um modo feliz, a tradição cristã, quando indica os mistérios principais da fé: unidade e trindade de Deus, Pai, Filho e Espírito; encarnação, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo e efusão do Espírito Santo.

61. A iluminação e o poder transformador da semente evangélica, no plano da história colectiva da sociedade e da cultura (como também da própria religião) destinam-se, porém, a produzir o seu fruto em conexão com a maturação da consciência histórica, ou seja, em cada época, em relação com as condições do terreno. O ensinamento da famosa parábola do semeador, proposta e pormenorizadamente explicada por Jesus aos seus (Mt 13, 1-23; Mc 4, 1-20; Lc 8, 4-15) vale ainda para a história colectiva dos povos e das épocas. Em seguida, a solene promessa do envio do Espírito Santo, que “o Pai mandará em meu nome” e que “vos ensinará todas as coisas, recordando-vos tudo o que eu disse” (Jo 14, 25-26), indica claramente um horizonte para toda a história da fé, em que a preservação da memória, a escuta do Espírito e o progresso da inteligência são incessantes.

62. Hoje, graças à nova visibilidade mediática dos acontecimentos e à rapidez da comunicação global, impõe-se com inédita força também a evidência das manipulações da religião, que são instrumentalmente dirigidas ao conflito de civilização e ao ódio étnico. A imensa massa dos homens religiosos, que se identificam com a qualidade espiritual e o apoio moral do seu credo religioso e do seu respeito do divino, sofre o envilecimento – e, amiúde, os efeitos devastadores – do incitamento religioso à violência. E milhões de homens e mulheres, filhos e filhas, aos quais a violência anticristã retira, muitas vezes, a palavra e a representação, reconhecem na busca dos caminhos de Deus e na necessidade de reconciliação com Deus, um motivo supremo de ligação entre os homens. O aprofundamento desta nítida evidência faz ainda sobressair mais o apelo que ela objectivamente dirige ao testemunho cristão do especial nexo do amor de Deus e do amor do próximo, que encontra em Jesus Cristo a razão última da sua verdade e do seu adimplemento (cf. Jo 13, 34). Em particular, o sofrimento e o envilecimento dos povos por causa da violência religiosa e anti-religiosa, que hoje levanta de novo a cabeça no mundo globalizado, encontrarão motivo de esperança e de redenção na nova vitalidade da forma eclesial da fé cristã[26].

63. Pela vitalidade e transparência da verdade de Deus, que é Pai de todos, a missão cristã que aponta para a qualidade evangélica da forma eclesial, em que todas as gentes estão persuasivamente representadas na comunhão da fé, é um verdadeiro kairòs do Espírito, ou seja, o momento favorável para a proximidade de Deus em Jesus Cristo. Nesta fase histórica, o cristianismo é posto – e exposto – como um ponto de referência global e inequívoco para a denúncia da radical contradição de uma violência entre os homens, exercida em nome de Deus. Enquanto tal, é chamado a purificar e a fortalecer o seu ministério de reconciliação entre os homens: sejam eles religiosos ou também não religiosos. Isto comporta verosimilmente algumas prioridades de empenhamento, reflexivo e prático.

64. Em primeiro lugar, trata-se de ver no kairòs da irreversível despedida que o cristianismo faz das ambiguidades da violência religiosa o traço de viragem epocal que ele consegue objectivamente instituir, no actual universo globalizado. Semelhante despedida, adequadamente argumentada em recinto de reflexão teológica e de hermenêutica da tradição (que vai buscar ao seu tesouro “coisas novas e velhas” [cf. Mt 13, 52]), há-de encarar-se como um florescimento da semente evangélica destinada a dar fruto para a nova etapa da evangelização e do testemunho. A Igreja pode nela reconhecer a graça de um discernimento que inaugura uma nova fase da história da salvação que prossegue: uma graça de purificação e de transparência da novidade cristológica de Deus; um passo em frente no caminho da actualização eclesial do mistério da redenção que, em cada época, indica à obediência da Igreja inteira o complemento “daquilo que falta”, da nossa parte, “à paixão de Cristo” (Col 1, 24). A assimilação coerente desta graça comporta necessariamente o humilde reconhecimento das muitas resistências, omissões e contradições que, de uma forma culpada, impediram o acabamento desta maturação. O rigor da obediência da fé, acompanhado pela humilde conversão do coração e pelo sincero reconhecimento do pecado não é obstáculo, antes um apoio decisivo. A Palavra de Deus que vem a nós, que nos chega das Sagradas Escrituras não nos deixa sem discernimento e sem apoio, quando nos instrui – de mil modos – acerca das infidelidades do povo na aliança com Deus e da vulnerabilidade e exposição dos discípulos à tentação e à traição do Senhor.

65. Semelhante despedida da Igreja da violência religiosa tem a força de uma semente destinada a produzir especiais frutos na nossa época, ameaçada pelo refluxo de uma concepção arcaico-sacral do ódio étnico-político. Destes frutos, com a assistência do Espírito, devemos partilhar o entusiasmo e aprender a suportar os riscos. A superação de toda a ambígua justificação religiosa da violência deverá elaborar com a máxima determinação também a crítica da violência anti-religiosa. O apoio cultural e político que a intimidação e a repressão anti-religiosa receberam, na época da modernidade findada, assinalou um dos pontos de mais dolorosa contradição da época moderna. Há, de resto, também excessos destruidores da razão secularizada, económica e política, que os poderes do domínio financeiro e a potência da tecnocracia mediática podem tornar devastadores.

66. A fé revelada do cristianismo introduz um fermento de viragem radical para a concepção da religião e do humanismo, de modo indissoluvel. Esta fé é hoje chamada a antecipar a época da expurgação definitiva do “nome de Deus” da sua profanação mediante a justificação religiosa da violência. Na revelação trinitária, a reconciliação de Deus com o género humano encontra o seu fundamento irrevogável e o seu princípio transparente. “Graças à Economia, é-nos revelada a Teologia; mas, inversamente, é a Teologia que ilumina toda a Economia. As obras de Deus revelam quem Ele é em si mesmo; e, inversamente, o mistério do seu Ser íntimo ilumina a inteligência de todas as suas obras”[27]. Desta fé brotam também ilustrações decisivas sobre as aberturas e os pressentimentos da razão humana na demanda da verdade de Deus: às quais desejamos agora dedicar alguma atenção.



CAPÍTULO IV
A FÉ EM FACE DA AMPLITUDE DA RAZÃO



1. A via do diálogo e o nó do ateísmo

67. O pensamento bíblico do Deus único deparou providencialmente com um processo de purificação humana da ideia do divino que, no seio da filosofia antiga, estava orientado para a unificação do divino num sentido afim ao monoteísmo. É compreensível que o encontro da incipiente religião cristã com a teologia filosófica racional tenha sido captado como uma oportunidade para o pensamento da fé. Semelhante encontro com a filosofia abrira já caminho, em parte, na tradição judaica. Em parte atravessará, também ao longo do tempo, a tradição islâmica. No espaço deste confronto filosófico e interreligioso, prosseguido no seio da teologia e da cultura ocidental, irrompeu, por fim, o ateísmo “moderno”, orientado primeiramente no sentido anti-cristão.

68. Na época antiga e até à contemporaneidade, o ateísmo aparecera, em diversas formas, como opção teórica de pensadores individuais, incapaz de determinar um verdadeiro e genuíno sistema cultural alternativo, à aceitação religiosa e filosófica do pensamento de Deus. Agora, pelo contrário, pela primeira vez na história, o ateísmo constituiu-se como sistema cultural fundado na racionalidade humana. Esta orientação esteve culturalmente associada ao rigor do procedimento racional do saber crítico, e à emancipação humanista da pretensa alienação religiosa. Por outras palavras, a orientação ideológica implantou na cultura actual, como se de um dado científico se tratasse, a ideia de que “Deus” é uma invenção do homem: imaginação securizante e apaziguadora perante o medo da morte e a impotência do desejo que, por fim, se transformou num fantasma de um poder humilhante e opressivo do qual é necessário libertar-se. Na esteira deste processo de desconstrução da ideia de Deus, orientam-se muitas formas de agnosticismo, indiferentismo, relativismo, que denunciam como ilusório – projectivo, e, por último, despótico – todo o pensamento da qualidade espiritual e do sentido transcendente do humano. Muitas formas do reducionismo antropológico, ideologicamente extraído das ciências da natureza, como também as formas do laicismo político, que teorizam a remoção do pensamento religioso do diálogo democrático da esfera pública, são manifestações extremas – e não raro intolerantes – do empobrecimento do humanismo que acompanha o pensamento niilista sobre Deus.

2. O confronto sobre a verdade da existência de Deus

69. Na verdade, a própria teologia cristã confrontou-se sempre criticamente com o problema da possibilidade e do valor do pensamento humano sobre Deus: quer em relação à teologia filosófica da cultura ocidental, quer perante as outras culturas religiosas do mundo. Por outro lado, a fé permanece convencida de que a plena verdade sobre Deus vai infinitamente além do que a razão humana pode aferir e afirmar: neste sentido, a sua revelação supera a possibilidade da filosofia. Por este motivo a teologia católica não renuncia a buscar o seu caminho acerca desta dupla instância: a da harmonia da fé com os princípios da razão, por um lado e a da ultrapassagem da filosofia por parte da fé. Na linguagem da tradição antiga, que hoje se interpreta bem, para não suscitar mal-entendidos, a fé cristã era entendida também como “verdadeira filosofia”. Pretendia-se assim aludir à síntese e não à alternativa desses dois pólos: a fé cristã superava a filosofia elaborada pelo homem, enquanto se empenhava em honrar a consonância da verdade recebida na revelação com a verdade buscada na filosofia. A distinção fundamental do cristianismo, como obra de Deus, e da filosofia, como obra do homem, permanecia, de qualquer forma, muito sólida e, no entanto, o carácter marcadamente sapiencial e moral e o carácter espiritual e existencial do exercício filosófico antigo, favorecia a percepção de uma certa analogia e a plausibilidade do confronto com a atitude religiosa. Seja como for, a polaridade de fé e razão está presente desde o início da teologia cristã. S. Paulo afirma claramente que Deus manifestou o seu poder à nossa inteligência nas suas obras (ao ponto de a recusa de reconhecê-Lo não conseguir argumentar a sua justificação; cf. Rm 1, 18-25). Por outro lado, revela-se igualmente decisivo, ao afirmar que a revelação salvífica de Deus, centrada no Crucificado, surge como loucura aos olhos da sabedoria humana: e todavia, ela revela uma sabedoria infinitamente mais profunda (cf. 1 Cor 1, 21-25).

70. Recordemos agora, por simples acenos, os elementos essenciais do pensamento de referência comum, no seio da tradição católica, acerca da distinção e da correlação entre a “cognoscibilidade” filosófica de Deus e a inteligência “teológica” da sua revelação. S. Tomás de Aquino, a propósito dos papéis respectivos da filosofia e da teologia, elaborou uma teoria destinada a tornar-se clássica. No seu modelo de solução, é inconcebível uma verdadeira contradição entre o que ensinam a fé e a razão, visto que os princípios da razão – tal como a verdade revelada – também derivam do único Deus. Mais ainda, S. Tomás sente-se impelido a afirmar a necessidade de um conhecimento das criaturas sempre mais aprofundado, justamente em função do mais rigoroso conhecimento de Deus. Semelhante necessidade depende do facto de que “o erro nas coisas criadas induz ao erro nas coisas divinas”[28]. O conhecimento das criaturas diversifica-se, sem dúvida, em relação ao modo de acesso: na teologia elas são conhecidas no seu nexo com Deus e a partir da revelação, ao passo que na filosofia são conhecidas por si mesmas e interrogadas quanto à possibilidade de, em si mesmas, nos conduzirem a um certo conhecimento de Deus.

Na linha do modelo aperfeiçoado por S. Tomás, a filosofia pode aceder ao conhecimento da existência de Deus e de algumas perfeições de Deus (como a sua unicidade, a sua providência, o seu carácter pessoal). Embora não seja capaz de conhecer o que deriva estritamente da revelação (como a Trindade), a filosofia pode ajudar a pensar o que foi recebido por revelação e a rejeitar as objecções que se movem contra a possibilidade de a fé ser pensada[29]. É igualmente verdade que, no âmbito de algumas verdades importantes para a vida do homem, acessíveis em si à filosofia, a fé oferece o apoio de uma confirmação mais directa, de uma certeza mais profunda, aberta a um mais amplo número de pessoas. A fé não brota, pois, de um simples conhecimento intelectual, mas de uma escolha na qual incide a orientação do desejo: este desejo não desempenha automaticamente um papel de perturbação do conhecimento intelectual, mas de per si ajuda-o e acompanha-o com muita eficácia.

71. A Constituição Dei Filius do Concílio Vaticano I rejeitará igualmente os excessos do racionalismo e do fideísmo, e define a possibilidade de um conhecimento de Deus mediante a razão, que permaneça aberto ao salto qualitativo e quantitativo da revelação. Embora se afirme que o conhecimento da existência de Deus mediante a razão é possível, isso não significa que este resultado seja fácil. Por um lado, exige-se a cada homem, desde agora, a responsabilidade da decisão. Por outro, o seu alcance existencial é determinado pelas orientações do desejo, plasmadas pelas condições ambientais e pelo contexto cultural. A incidência destes factores é, claro está, um tema de discernimento necessário: não só para a clarificação racional da fé, mas ainda para a compreensão crítica do ateísmo. Neste sentido se expressara já Pio XII, antes do Concílio Vaticano II: “As verdades que concernem a Deus e às relações entre os homens e a Deus transcendem inteiramente a ordem das coisas sensíveis; quando, em seguida, se fazem entrar na prática da vida e a enformam, então exigem sacrifício e abnegação. [...] Acontece que os homens nestas coisas de bom grado se persuadem de que é falso, ou pelo menos duvidoso, o que eles não querem que seja verdadeiro”[30].

72. O Concílio Vaticano II intima o apuramento do Vaticano I [31], e atribui aos próprios crentes uma especial responsabilidade pela origem do declínio do desejo de Deus que alimenta também o ateísmo. «Nesta génese do ateísmo, os crentes podem ter uma parte não irrelevante, na medida em que pelo descuido da sua educação na fé, ou por causa de enganadoras apresentações da doutrina, como também por causa das debilidades da sua vida religiosa, moral e social, acabam realmente por velar – mais do que revelar – o autêntico rosto de Deus e da religião»[32]. Um dos grandes obstáculos à credibilidade da fé – sobretudo após as «guerras de religião» – é justamente a violência religiosa: “Se quiserdes assemelhar-vos a Jesus Cristo, sede mártires e não carniceiros”[33]. A reacção ao grave equívoco que se seguiu a este género de conflitos (embora não exclusivamente ligados ao dissídio religioso) foi formulada com nitidez na Declaração sobre a liberdade religiosa [34]. Neste documento, o Concílio denuncia a contradição inscrita na relação da verdade com a violência, que a crítica filosófica vigorosamente realçou e reencontra no próprio núcleo do ensinamento evangélico o motivo de um nítido distanciamento relativamente a toda a contaminação equívoca da lógica da fé com a do domínio. «Cristo, de facto, nosso Mestre e Senhor, doce e humilde de coração, convidou e atraiu os seus discípulos com paciência [...]. Deu testemunho da verdade, mas não a impôs pela força àqueles que o contradiziam. O seu Reino, na verdade, não se guarda com a espada, mas afirma-se com a escuta da verdade e por meio do testemunho»[35]. O papa João Paulo II completou esta Declaração na celebração de 12 de Março de 2000, quando pediu perdão por todas as culpas com que os cristãos se mancharam na qualidade de membros da Igreja[36].

3. A crítica da religião e o naturalismo ateu

73. O debate acerca da existência de Deus é hoje fortemente estimulado pelo êxito de publicações de explícita propaganda do ateísmo. Os filósofos teístas – e, naturalmente, os filósofos cristãos – contrapõem muitos argumentos. Em primeiro lugar, a própria existência do mundo que não pode encontrar em si mesmo a razão da sua existência. Em seguida, a evidência da organização que torna possível a existência e a vida do mundo reclama inegavelmente o pensamento de uma inteligência ordenadora. A evidência da ordem, na verdade, deve argumentar-se de modo não ideológico e determinista, para não entrar em contradição com a compreensão da liberdade e da casualidade dos acontecimentos; e também – ao invés – a fim de evitar a construção de um sistema da fatalidade e da necessidade do mal. Neste âmbito, importa sobretudo ter todo o cuidado de seleccionar e escolher os inumeráveis equívocos que brotam – em ambas as frentes – da pura e simples confusão dos métodos e das linguagens: entre o plano da análise científica do dado e o da elaboração filosófica da experiência. Mas não existe, com tudo isto, nenhuma razão que obrigue a renunciar à experiência da admiração e do assombro que a própria existência das coisas e a maravilhosa organização da natureza suscitam na mente do homem. Logo que a questão ideológica – seja ela constrição da ciência, seja constrição da filosofia – cede o lugar à honestidade intelectual do saber, esta admiração surge como uma constante da experiência do cientista e do filósofo. Esta admiração é também sempre o efeito repetido do conhecimento: que se aprofunda, em ambos os domínios da razão, encontrando sempre novas correspondências na realidade. A inteligibilidade do mundo surge verdadeiramente como inesgotável: e a experiência desta inteligibilidade confirma que a nossa espontânea confiança na capacidade do mundo de corresponder à racionalidade do homem é bem fundada.

74. A eliminação de Deus, estabelecida com base numa razão «naturalista», associa-se hoje, amiúde, à dissolução «biológica» da liberdade humana. Nesta perspectiva, o nosso cérebro construiu para si o pensamento de Deus por razões ligadas a um determinado estádio evolutivo: em função do governo da complexidade, para compensar a inevitabilidade da frustração, como dispositivo de neutralização da morte. Com argumentos análogos é esvaziada a experiência espiritual da liberdade e a intencionalidade ética da consciência. A refutação deste reducionismo, que pretenda honrar a atestação universalmente difundida do homem moral – no direito e na arte, nos afectos e na espiritualidade – não deve limitar-se a «sobrepor» ao mundo natural um mundo «espiritual». Não existe, para a tradição cristã, um saber da realidade “naturalmente” ateu, ao qual se pode eventualmente acrescentar a convicção de uma realidade «espiritual» que não existe na natureza. Trata-se antes de mostrar como, ao testemunho religioso da existência de Deus, corresponde uma experiência da realidade do homem aliás inominável e inexplicável. A remoção desta atestação espiritual e religiosa do mundo empobrece todo o plano de realidade em que sempre se viveu e vive o ser humano. Neste sentido pode dizer-se que a renúncia a pensar a questão de Deus é “uma abdicação da inteligência humana que, deste modo, renuncia simplesmente a pensar, a buscar uma solução para os seus problemas”[37].

75. A ideia de Deus não é inata, no sentido de um saber conceptualmente preconstituído em relação à experiência do homem. No entanto, a disposição para o reconhecimento de Deus traz à consciência uma presença que, precedendo-a, a acompanha. Nesta perspectiva, o sentido religioso do homem, como também a existência efectiva das religiões, permanecem temas essenciais para a elaboração cultural da doutrina católica sobre Deus e a realidade. A noção pre-metafísica, ou pre-filosófica, de que Deus não é, de facto, irrelevante para a inteligência realista da experiência religiosa. O pensamento racional sobre Deus, como realidade que está no início e no fim de todas as coisas, ilumina a experiência pre-crítica, elaborando o seu horizonte de verdade[38]. A conexão entre a experiência religiosa universal e a demonstração filosófica da existência de Deus confere densidade e consistência ao pensamento que tematiza e assere o realismo do Ser divino: irredutível a ideia ou a coisa que se deixa construir pela mente ou constatar pelos sentidos; mas nem por isso reconduzível à projecção do sujeito ou à alucinação do desejo. O disseminado mal-entendido das célebres “vias tomistas” em que se articula a coerência racional do pensamento da existência de Deus surgiu também por causa da extrapolação intelectualista desse percurso demonstrativo, que acabou por separá-lo do seu nexo com o conhecimennto de Deus, embora natural e confuso, que é próprio do sentido humano da vida. O poder da realidade de Deus solicita a razão e suscita a liberdade do homem.

4. O empenhamento da razão: o mundo criado, o Logos de Deus

76. A ordem que se faz perceber e achar pela razão precede sempre aquela que a razão tenta aplicar. E mais ainda, torna-a possível. Não há nada de mais emocionante do que este reconhecimento, na aventura do conhecimento. No fim de contas, perante a hodierna «crise ecológica», podemos ainda reconhecer-nos na acutilante observação de S. Tomás de Aquino, que já considerara digna do máximo assombro a misteriosa ordem das correspondências que estabelece afinidades reconhecíveis nos elementos do criado. As realidades individuais do mundo criado não são capazes de fixar, apenas com base na sua constituição interna, as compatibilidades e as congruências do conjunto[39]. O hiato entre a limitação intrínseca e a sua auto-organização, e a lógica unitária do todo em que se inscrevem, excede a nossa capacidade de decifrar a sua chave derradeira. Este hiato e, respectivamente este excesso, podem interpretar-se como um indício do mistério da criação de Deus: que não se deixa inteiramente obscurecer ou aniquilar pela experiência da desordem e do mal. O mal leva-nos a tomar consciência justamente da nossa incapacidade de dominar e de recompor perfeitamente a relação do universo com os seus próprios elementos e com a nossa existência.

77. “Quando nos interrogamos: ‘Porque cremos em Deus?’, a primeira resposta é a da nossa fé [...]. No entanto, esta fé num Deus que se revela encontra apoio nas argumentações da nossa inteligência”[40]. Por outro lado, é verdade que afirmar a existência de Deus como causa do Universo deixa em aberto numerosas questões. Quem é este Deus? Que incidência tem ele, concretamente, na minha vida? Que quer de mim? Que faz por mim? Os cristãos argumentam e tematizam estas perguntas, no horizonte partilhado da reflexão filosófica, também para mostrar a coerência do ensinamento da fé com a interrogação do homem acerca do sentido. Este dinamismo do nosso humano interrogar impõe uma abordagem mais rigorosa e precisa àquilo que a fé realmente pensa, elaborando as condições da sua humana inteligibilidade. Não basta, por exemplo, afirmar simplesmente que Deus é único. Trata-se de compreender em que sentido se entende esta afirmação: há que estabelecer, pois, como Deus é único, e o que isso significa para a sua relação com o mundo e com os homens. A tarefa eclesial da teologia inclui, sem dúvida, o empenhamento intelectual desta clarificação.

5. Transcendência divina e relações no e com o Deus único

78. Deus é único: não há outros deuses. E Deus é uno em si mesmo: nele não há divisão. Nesta parte conclusiva, traçaremos as linhas da exposição cristã da absoluta simplicidade de Deus. Justamente em referência a tal simplicidade, entendida de modo correcto, há que ressaltar o sentido cristão da união de Deus com as criaturas a que ele quis ligar-se. A clarificação da gramática essencial desta correlação pode ajudar hoje, e muito, a clarificação de um certo mal-entendido, filosófico e também religioso, devido à suspeita de que a ênfase cristã na encarnação de Deus, como também a relação trinitária na vida de Deus, tenham lugar à custa da perda da pureza e da transcendência, da perfeita simplicidade de Deus. A nossa afirmação fundamental é, pois, esta: a pureza da unicidade de Deus não deve perder-se. E, todavia, a fé cristã na criação do mundo e na encarnação do Filho pode receber-se e acolher-se como uma confirmação e não como uma lesão do pensamento da unidade de Deus.

79. Os grandes pensadores cristãos, perante as várias doutrinas filosóficas e religiosas, sublinharam vigorosamente que Deus não apresenta os diversos tipos de composição que encontramos nas coisas criadas. Tudo o que existe em Deus é o próprio Deus. Como Santo Agostinho formulou, no contexto da fé trinitária, Deus “é o que ele tem” (quod habet hoc est)[41]. O reconhecimento da simplicidade de Deus, no cristianismo, não é, pois, o simples substrato de uma tradição filosófica: é o fruto do pensamento rigoroso da unicidade e da unidade do Deus Trindade. A simplicidade de Deus torna compreensível o sentido autêntico da doutrina trinitária. Na Summa Theologiae de S. Tomás de Aquino, a simplicidade é o primeiro dos atributos divinos que aparece examinado: dele depende a coerência de todos os outros atributos de Deus e a correcta inteligência do próprio mistério trinitário. Prolongando a afirmação agostiniana, S. Tomás explica que não só Deus “é aquilo que tem”, mas afirma que “aquilo que Deus é” (a sua “natureza” ou “essência”) se identifica com a sua existência (o seu acto de ser)[42]. Neste sentido, não existe categoria nem conceito que possa abraçar do mesmo modo, ou como numa única realidade, Deus e as criaturas: Deus não está contido num “género” que o poria ao mesmo nível das criaturas. Daqui deriva o pensamento irrenunciável da incompreensibilidade radical de Deus, juntamente com a necessidade (e a possibilidade) de recorrer à analogia para falar de Deus, sem violar a sua incomparável singularidade em relação a todo e qualquer outro possível termo de conhecimento. Por outro lado, permanece bem firme o facto de que, quando Deus age (criação, providência, salvação), não entra em composição com o mundo. Deus persiste essencialmente distinto de tudo o que não é Deus, e existe sem qualquer divisão em si mesmo.

80. A fé trinitária não altera esta unidade de Deus, pelo contrário, manifesta a sua impensável e insondável profundidade. O Pai, o Filho, o Espírito Santo são o Deus “uno”, porque “são” a mesma essência (ou substância) divina. Neste sentido, a fé cristã professa justamente uma “Trindade consubstancial”[43]. A riqueza e a profundidade da unidade trinitária foram expressas de modo eficaz pela noção de “pericorese”, que João Damasceno desenvolveu, indo buscar a sua perspectiva à palavra do Senhor: “Eu estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14, 10-11). A pericorese das três hipóstases, ou seja, as pessoas divinas entendidas por Tomás de Aquino como “relações subsistentes”, põe em relevo a sua perfeita consubstancialidade juntamente com a sua distinção pessoal. Portanto, as três pessoas são “um só Deus” e não “três deuses”. Uma é, de facto, a essência, uma a divindade, uma a eternidade de Deus. Sobre esta base, é possível também definir melhor as relações que Deus entretém com o mundo: “o Pai e o Filho amam-se a si mesmos e a nós pelo Espírito Santo”[44]. Deus não está “fechado em si mesmo”: pelo contrário, justamente a partir do seu ser comunhão dispõe-se à criação do mundo, ao exercício da sua providência, à intimidade da sua presença nas criaturas. A sua criatura é o seu interlocutor por puro amor, não à força.

81. O monoteísmo bíblico é a raiz desta perspectiva, porquanto nos põe diante de um Deus que se revela com sabedoria e amor, que fala e escuta, que envia os seus mensageiros e os seus profetas, que se apresenta “em pessoa” na encarnação do Filho e no envio do Espírito Santo. A tradição bíblica afirma que Deus criou todas as coisas na sua sabedoria e no seu amor (Pr 3, 19; Sb 7, 22; 11, 24-26). Ao reconhecer que Deus criou todas as coisas na sua Sabedoria, afirma-se que Ele não produziu o mundo por uma necessidade da natureza. De igual modo, quando dizemos que Deus criou por amor, pretendemos afirmar que Ele não criou o mundo e o homem por qualquer razão estranha à sua intenção. Fê-lo, pelo contrário, para comunicar a sua bondade: ou seja, com afecto inteiramente livre e gratuito. Poderia, este Deus, ser hostil aos homens? A omnipotência de Deus será uma ameaça para a autonomia do homem? A suspeita sugerida pela serpente da origem, segundo a narrativa bíblica (cf. Gn 3, 4-5), é insidiosa, mas desprovida de fundamento. A fé na omnipotência de Deus, que resiste ao mal, é justamente aquilo que nos protege destes fantasmas angustiantes e persecutórios. «Tu tens compaixão de todos, pois tudo podes» (Sb 11, 21-23). Na bela fórmula litúrgica «Abençoe-vos Deus todo-poderoso» já está tudo dito, com a simplicidade do essencial.

82. Deus, ao criar o homem à sua imagem e semelhança, inteligente e livre, constituiu-o como interlocutor e aliado no adimplemento e ultimação da criação. Deus instaura uma relação em que o homem é convocado na dignidade do seu ser singular e livre. Para este Deus pessoal pode o homem virar-se pessoalmente. A criatura humana surge, pois, constituída na faculdade de reconhecer e amar Deus, em virtude da sua capacidade pessoal de amar e de ser amada, e não apenas porque constrangida a sofrer e a suportar a lei despótica do ser mais forte ou a pulsão de sujeição do ser inferior. Não tem nada a ver com a escravidão do sagrado primordial (as forças ingovernáveis da natureza), e a sujeição às divindades míticas (as potências despóticas da política). Os crentes hão-de ser capazes de defender com firmeza e ilustrar adequadamente esta diferença radical, que os acusadores pós-modernos da unidade e da unicidade do divino ignoram com demasiada facilidade.

83. A elaboração coerente da radical simplicidade do ser divino ilumina a profundidade da relação que co-implica Deus e o homem segundo a revelação. Explicitemo-lo com brevidade, exemplificando. Na sua pura e simples perfeição, Deus não deve entrar em competição com as criaturas. Pelo contrário, na sua bondade e sabedoria, Ele concedeu às criaturas a “dignidade de ser causa” (dignitas causalitatis) [45]: Faz que a criatura participe na sua ilimitada capacidade de fazer-ser[46]. Deus – é esta a explicação – dá às criaturas a existência, o poder de agir e a própria acção (“É Deus quem, segundo o seu desígnio, opera em vós o querer e o agir” (Fl 2, 13). Deus actua, por isso, em todo o agir das suas criaturas, mas não actua como uma causa entre as outras. Na formulação clássica, Deus age como “causa primeira” e transcendente. As criaturas exercem a acção que lhes é própria – no caso do homem, uma acção inteligente e livre – como “causas segundas”, associadas à acção de Deus[47].

84. A fecundidade deste modelo integrado – filosófico e teológico – de clarificação da fé no Deus revelado surge particularmente eficaz também no âmbito de temas que concernem directamente aos aspectos fundamentais da experiência religiosa, como, por exemplo, o da oração que “pede a Deus”. A oração, sob este aspecto, surge como uma realização alta e sugestiva desta estrutura fundamental da relação entre Deus e o homem, no âmbito de uma disposição afectiva particularmente intensa do vínculo. A oração surge, de facto, como uma realização eminente da “dignidade do ser-causa” que nos foi concedida por Deus. A oração que dirigimos a Deus não tem, decerto, a finalidade de “o informar” sobre uma necessidade nossa ou um desejo de bem que Ele “ignora”; nem, por outro lado, se pode imaginar “forçar” a Sua vontade de bem, com o propósito de fazê-la mudar. A verdade é que a nossa oração, justamente ao afundar as suas raízes na nossa fé no amor de Deus, pode compreender-se muito bem como uma colaboração real na acção do amor de Deus que realiza o bem: em nós, para nós e connosco. Por outras palavras, “Rezamos para pedir o que Deus dispôs que seja levado a cabo pelas orações”[48].


CAPÍTULO V
OS FILHOS DE DEUS DISPERSOS E REUNIDOS



1. A dignidade do ser humano individual e o liame dos muitos

85. Criado à imagem de Deus em Cristo (cf. Gn 1, 26-27 à luz de Cl 1, 15-17; 1 Cor 8, 6; Jo 1, 1-3.10; Hb 1, 1-2.10; Rm 5, 14)[49] o homem é pessoa e relação, individualidade e comunhão. A fé monoteísta apoia e sustenta o valor da unicidade e da unidade de cada pessoa humana. Ao estabelecer cada pessoa singular em relação directa com o Deus único, seu criador e destinação última da sua vida, e ao pedir ao crente para amar este Deus único “com todo o seu coração, a sua alma, as suas forças” (Dt 6, 5), o monoteísmo favorece uma ética da unificação da pessoa humana, do mesmo modo que sustenta a sua relacionalidade constitutiva. Ambas as dimensões da experiência concreta do homem – pessoa e comunidade – se exigem numa unidade que é dom divino e não produto das nossas forças[50]. O enfraquecimento, na cultural actual, do fundamento cristológico e trinitário da criação do homem teve evidentes recaídas também na antropologia: a cultura actual surge imbuída de uma difusa incapacidade de articular os aspectos constitutivos do humano. O pensamento antropológico empenhado em dar razão das qualidades humanas mais elevadas – em termos de “sensibilidade” e “espiritualidade”, de “criatividade” e “transcendência” – não é considerado apenas pobre: é até acusado de ser abstracto e sentimental, ideológico e não científico. A remoção de um pensamento elevado da origem e do destino do homem, que interpreta os temas da sua experiência partilhada, pode reconhecer-se como a raiz da difusão de um agnosticismo resignado e niilista, que esvazia as novas gerações de forças e energia. Os efeitos deste declínio humanístico põem em causa a visão cristã do homem. O Concílio Vaticano II restituiu grandeza de visão à interpretação cristã da dignidade do homem, indicando abertamente, na verdade cristológica de Deus, o princípio da sua redenção: “só no mistério do Verbo encarnado encontra verdadeira luz o mistério do homem [...] Cristo, que é o novo Adão, justamente ao revelar os mistérios do Pai e do seu amor, desvela também plenamente o homem ao homem e dá-lhe a conhecer a sua altíssima vocação[51].

86. Na óptica do mistério do Filho, o ponto de máxima profundidade do laço que subsiste entre Deus, a origem incriada, e o homem, a criatura vivente, pode captar-se justamente na geração: transmissão da vida, constituição da alteridade. Na revelação trinitária, a geração do Filho é a raiz incriada e insuperável da intimidade de Deus. Na constituição do humano, o nascimento ilumina-se com o mistério da geração do Filho. Perante a ilusão antiga e moderna do homem que “se faz a partir de si”, uma teologia da criação do homem que se aplicasse com nova determinação à iluminação deste nexo do ser-humano com o ser-filho (em última análise, com o Filho-em-Deus) restituiria um elevado perfil também à diferença sexual do homem e da mulher e à componente relacional da maturação pessoal. A hodierna busca de uma coerente composição humanista do “privado” e do “comum”, quando deriva do pressuposto de uma absolutização do “Si” mesmo individual, revela precisamente a dificuldade em produzir e suscitar a integração procurada. O mistério revelado da origem divina, que culmina na unidade trinitária de Deus, sustenta e apoia a abertura do humanismo à intrínseca correlação entre o elemento positivo do Si mesmo e o elemento positivo do outro, que confluem inseparavelmente na constituição do humano pessoal.

87. De qualquer modo, na perspectiva da visão cristã, a nossa filiação adoptiva no Filho é o sinal mais eficaz de um Deus que é a fonte da nossa liberdade: libertação no Espírito de toda a escravidão (cf. Gl 4, 7; Jo 8, 36) e adopção de filhos no Filho.

2. Deus corrobora a paixão pela justiça, reabre a esperança da vida

88. O dom redentor do Filho e do Espírito, por meio da comunicação sacramental no baptismo e na eucaristia, faz verdadeiramente dos homens filhos de Deus por adopção e irmãos entre si (cf. Gl 3, 26-27; 1 Cor 11, 23ss). S. Paulo estava disso bem consciente quando pedia e exigia a força da unidade dos irmãos, entendendo-a como koinonia dos diferentes e dos seus dons, na comunhão do único Corpo do Senhor e do único Espírito que em todos actua. Esta unidade, irredutível à abstracta igualdade de identidades separadas, é símbolo real e impulso eficaz para a cultura humana dos laços sociais e a superação da inimizade entre os povos. O Apóstolo exortava a reconhecer a pertença recíproca, porque somos “membros uns dos outros” (cf. Ef 4, 25), até à fórmula, cheia de força no original grego, que proclama: “sois um (eis) só em Jesus Cristo” (cf. Gl 3, 28). Toda a teologia paulina está profundamente inspirada por este radical princípio da fé cristã. O nosso “ser um só” em Cristo possibilita o início de uma nova história de solidariedade e de subsidiariedade partilhada entre os homens, até à verdadeira e genuína caridade fraterna.

89. Tendo presente tudo o que já se disse sobre a criação no capítulo precedente, é bom recordar que a lógica correspondente à unidade do Deus vivo, na sua presença e na sua acção entre os homens, é a de “agápe”. O poder divino está ordenado à sabedoria e à bondade de um Deus que é em si mesmo amor[52]. Desde a comunicação do ser à criatura até à oferta da amizade do Filho, a revelação de Deus espelha e reflecte a intimidade de uma vida cuja unidade é inteiramente atravessada pela disposição relacional do amor[53].

90. O monoteísmo trinitário consegue explicar a eterna positividade e dignidade do outro, porque as três pessoas subsistem no único Deus segundo uma ordem de referência do Logos e da Agape. Uma interpretação cristã correcta está, pois, muito longe dos excessos da tendência para realçar unilateralmente a impotência ou a debilidade como um sinal característico – e mais ainda, a verdade essencial – do ser-de-Deus. Nesta tendência – que se pode apreender como resposta aos excessos racionalistas da teodiceia – pode entender-se mal a fundamental revelação cristã da kénosis salvífica do Filho, na qual assoma o excesso da agape de Deus. Existe o risco de levar o raciocínio ao ponto de fazer coincidir a qualidade divina com uma espécie de despotenciação radical do ser, que – no seu fundo – se rende irrevogavelmente, e sem poder de redenção, à injustiça e à prevaricação. Como se a essência do amor de Deus coincidisse em si mesma com uma espécie de “ética da impotência”, fundada numa “metafísica do envilecimento”, que pronuncia a última palavra sobre o sentido derradeiro do sacrifício do Filho[54]. Sem a referência ao poder do amor de Deus e à sua inconciliabilidade com o mal, a disponibilidade kenótica do Filho transformar-se-ia em simples proximidade sentimental. E a redenção acabaria por coincidir pura e simplesmente com a resignação à aviltação e ao derrame do sangue. O mal-entendido teológico desta interpretação revelar-se-ia, por fim, como maior do que o que, presumivelmente, pretende corrigir. A recaída simbólica desta interpretação acabaria por alinhar de novo, paradoxalmente, com a deriva dolorista da teologia que atribui um automático valor de redenção ao derrame do sangue enquanto tal: sem dar a entender explicitamente que esse valor deriva e brota justamente da caridade com que o Filho, como Servo de Deus, “dá a sua vida em sacrifício pelo pecado” (Is 53, 10). Deus condena o homicídio do Inocente, mas acolhe a oferenda que Cristo faz de si mesmo. Este sacrifício, de valor absoluto e infinito, sela e encerra, no seu definitivo adimplemento, todos os sacrifícios da antiga aliança.

91. Na verdade, na sua kénosis, o Filho de Deus aceita habitar, até ao extremo, a impotência e a debilidade do homem pecador: ao atrair sobre si o poder incontível e destruidor do pecado, que o homem não consegue vencer (cf. Rm 8, 3; 2 Cor 5, 21). O Filho de Deus aceita assumir e viver, até extremo, a forma dramática da condição humana (cf. Gl 3, 13), em vez de permanecer simplesmente na glória intacta e imutável da sua condição divina. A eficácia salvífica deste esvaziamento está justamente ligada ao facto de que Aquele que a “incorpora” é o Unigénito de Deus, que partilha eternamente a plenitude da vida de Deus, o poder do seu senhorio, a força da sua infinita estranheza ao mal. A paixão do Filho feito homem, que assume até ao fundo a debilidade humana para o nosso resgate e redenção, revela justamente assim o poder do amor do Pai que nada impedir (“Sim, se foi crucificado na sua fraqueza, agora está vivo pelo poder de Deus. Nós também somos fracos nele, mas viveremos com Ele pelo poder de Deus que actua em vós”, 2 Cor 13, 4).

92. A ressurreição de Jesus Cristo crucificado atesta o poder do amor de Deus, que restitui, inclusive, a carne e o sangue à vida do Espírito (“E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cristo de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós”, Rm 8, 11). Nenhuma força do mal e nenhum poder da morte podem subtrair o Filho aos laços do Pai e do Espírito em que Deus vive. E nada pode separar o homem de Deus, porque nada pode separar Deus de si mesmo (“Se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?”, cf. Rm 8, 31-39).

3. A purificação religiosa da tentação do domínio

93. A conjunção kenótica do poder e da doação indica, da forma mais precisa, a singularidade cristã da concepção do Deus único. A pregação do Cristo crucificado, separada do anúncio do Cristo ressuscitado, não restabelece a verdade da revelação cristã de Deus. A livre entrega do Filho ao mundo por parte do Pai, como também a vitoriosa reentrega do mundo ao Pai, por parte do Filho, ocorrem, na unidade do Espírito idêntico, propter nos homines et propter nostram salutem (cf. Jo 3, 16-17; 1 Cor 15, 20-21). O Crucificado Ressuscitado desafia o poder aparentemente invencível dos inimigos do homem: o diabo, o pecado e a morte (cf. Rm 6, 3-11). O poder de Deus é a verdade do seu amor, o amor de Deus é a verdade do seu poder[55].

94. A religião dos homens nunca pode considerar-se apenas ao abrigo da tentação de trocar o poder divino por um poder humano, que desemboca, por fim, no caminho da violência. Os evangelhos recordam claramente que esta foi uma tentação que Jesus rejeitou. E que ele próprio explicitamente mandou aos seus discípulos que a rejeitassem (cf. Mc 10, 35-45; Lc 22, 24-27). Por isso, não pode negar-se que a própria religião sempre precisou, em si mesma, de contínua purificação[56] que permita reconduzi-la sempre de novo à sua destinação mais própria, a saber, à adoração de Deus em espírito e verdade, como princípio de reconciliação com Deus e de fraterna convivência entre os homens (cf. Jo 4, 23-24).

95. A corrupção da religião, que acaba por pô-la em contradição com o seu sentido autêntico, é decerto uma ameaça temível para a humanidade do homem. Infelizmente, esta possibilidade permanece sempre actual, em cada época. Deve ser reconhecido claramente, por todas as comunidades religiosas, e por todos os responsáveis da sua custódia, que o recurso à violência e ao terror é, com toda a certeza e evidência, uma corrupção da experiência religiosa. O reconhecimento da contradição que assim se realiza com o espírito universal da religião, é uma possibilidade concreta no âmbito de cada tradição histórica. A traição do espírito religioso é, por outro lado, mais facilmente manifesta nas formas de violência inspirada por interesses económicos e políticos, que se serve instrumentalmente da sensibilidade religiosa dos povos. Instrumentalização análoga, de resto, à que busca a opressão do testemunho religioso, com base em interesses económicos e políticos pretensamente revestidos, para benefício das massas, de elevadas finalidades humanísticas.

96. Por último, a pretensão de autodomínio do homem, que chega ao ressentimento contra Deus, não pode deixar de lesar a dignidade humana e de ter consequências de sujeição violenta do homem sobre o homem. As relações conjugais, de geração e de cuidado, de filiação e de fraternidade – como todas as formas dos afectos e laços humanos quando se fecham ao acolhimento do dom divino – permanecem expostos à inversão e ao colapso da sua justiça. O cuidado do humano vulnerável – porque pequeno, porque débil, porque diferente – perde importância frente ao egoísmo do cuidado de si. O poder redentor de Deus, inscrito na livre doação de amor – só ele – põe de novo em jogo a herança da promessa contra a herança do pecado.

4. A força da paz com Deus, missão da Igreja

97. No tempo da nossa história, a condição do povo cristão – e assim de cada fiel – é caracterizada pela expectativa escatológica e, portanto, pela sua condição constitutiva de ser um povo a caminho[57]. Contra todos os milenarismos, o cristão não tem nenhuma pretensão de forçar os tempos do fim da história e do fim do último dia, que só o Pai conhece (cf. Mc 13, 32). E vive o tempo como dom precioso de Deus, grande sinal da sua benevolência e generosidade, com a consciência de que o tempo se faz breve (cf. 1 Cor 7, 29)[58]. Paulo sente, pois, que o amor de Deus urge e constringe o tempo perante os outros homens, para evangelizar aqueles que ainda não conhecem o desígnio bondoso do Pai (cf. 1 Cor 9, 16; 2 Cor 5, 14ss).

98. Para o povo cristão, o conteúdo do tempo e da história consequente ao envio do Filho e do Espírito tem um nome próprio: missão. Enquanto durar o tempo da história, a unidade visível dos redimidos torna-se semente de novidade na construção do laço social [59], até alcançar todas as suas dimensões, de acordo com um desígnio que só ao Pai pertence (cf. Rm 16, 26; 1 Cor 2, 7; Ef 1, 4-10).

99. A comunhão eclesial institui um termo de comparação e um princípio de juízo sobre a realidade dos laços sociais: proclama a dignidade incondicionada da pessoa humana[60]; encoraja a abertura universal (catholica) a todos os homens[61]; escora e sustenta as razões de subsidiariedade e solidariedade que devem inspirar a organização civil[62]. A demanda de tal comunhão não se cansará de considerar a gravidade das divisões entre os cristãos, dedicando-se com paixão sincera à causa ecuménica. O florescimento da semente lançada pela unidade dos crentes em Cristo, em virtude da acção do Espírito que sustenta e fomenta a laboriosa e apaixonante concepção da nova criação, também no seio da geração e da regeneração dos vínculos humanos e civis, pode saudar-se como antecipação do mundo definitivo, onde finalmente Deus será “tudo em todos” (cf. 1 Cor 15, 28). O horizonte que ilumina inteiramente esta tensão constitutiva do homem é, por fim, o mistério do apelo a participar da vida de Deus mediante a vida da Igreja[63]. Por isso, é na vida autêntica da Igreja, na evidência da fraternidade eclesial gerada pela fé em Jesus Cristo, que se há-de reconhecer a plena conciliação entre a dignidade individual de cada pessoa e a responsabilidade partilhada dos laços sociais. Na graça da communio, que generosamente reabre sempre de novo a liberdade humana aos laços de Deus, existe um princípio de libertação frente à alternativa entre a responsabilidade da realização própria e o cuidado do humano partilhado: a sua separação torna inabitável o mundo e extingue o espírito. Para tornar persuasivo o apelo de Deus à reconciliação entre os homens, é indispensável restituir à communio eclesial uma nova transparência no palco da história.

100. A confissão da fé perante o ateísmo militante e a violência religiosa é, hoje, conduzida pelo Espírito na fronteira profética de um novo ciclo religioso e humano dos povos. O ícone eclesial deve, por seu lado, suscitar a imagem de uma religio que se despediu definitivamente – em antecipação à história que se seguirá – de toda a sobreposição instrumental da soberania política e do Senhorio de Deus. Esta despedida pode e deve ser vivida por todas as comunidades cristãs da época presente, como o advento do tempo estabelecido pelo Senhor para a maturação da semente evangélica. A perfeita comunhão com a intimidade da vida de Deus, “enxugadas todas as lágrimas”, será simplesmente a morada do homem (Ap 21, 3-4). O tempo da perseguição deve ser suportado, na expectativa da conversão esperada para todos. Desta paciência, deste suportar, desta força dos “santos” em carregar com a tribulação da espera, estamos em dívida de reconhecimento para com muitos irmãos e irmãs perseguidos pela sua pertença e identidade cristã. Honramos e lembramos o seu testemunho como a resposta decisiva à demanda e à pergunta sobre o sentido da missão cristã a favor de todos. A época de uma nova evidência no tocante à relação entre religião e violência entre os homens é aberta pela sua coragem. Deveríamos sabê-la merecer. A Mãe do Senhor há-de considerar-se como a protecção insubstituível do advento desta nova época e dos frutos do Espírito que se irão seguir. A consciência e a invocação da sua especial intercessão deverão ser um tema especial da nossa conversão e da nossa oração; e um ponto de força para a comunicação e a assimilação jubilosa deste horizonte da promessa entre os homens e as mulheres do nosso tempo, para “dirigir os nossos passos pelo caminho da paz” (Lc 1, 79).





[1] CONCÍLIO VATICANO I (1869-1870), Constituição dogmática Dei Filius, cap. 2 (DH 3004): “[…] Ecclesia tenet et docet, Deum, rerum omnium principium et finem, naturali humanae rationis lumine e rebus creatis certo cognosci posse”.

[2] Cf. ibid. DH 3001-3002.

[3] BENTO XVI, Discurso no Aeroporto Internacional Ben Gurion, Tel Aviv, 11 de Maio 2009: “A ordem justa das relações sociais pressupõe e exige o respeito pela liberdade e dignidade de cada ser humano que, segundo a fé dos Cristãos, Muçulmanos e Judeus, foi criado por um Deus amoroso e destinado à vida eterna”. E ainda BENTO XVI, Discurso na Esplanada das Mesquitas. Jerusalém, 12 de Maio 2009: “Enquanto Muçulmanos e Cristãos continuam o diálogo respeitoso que já iniciaram, rezo para que eles possam indagar como a Unicidade de Deus está inextricavelmente ligada à unidade da família humana”.

[4] Cf. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Memória e reconciliação. A Igreja e as culpas do passado (2000).

[5] CONCÍLIO VATICANO II (1962-1965), Declaração Nostra aetate, 4.

[6] Veja-se a documentação patrística recolhida em COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, O cristianismo e as religiões (1997), 41-44.

[7] S. Justino, citado por S. IRENEU, rejeita as teses marcionitas: “Et bene Justinus in eo libro qui est ad Marcionem  ait  quoniam  Ipsi  quoque  Domino  non  credidissem  alterum  Deum  annuntianti  praeter

Fabricatorem et Factorem et Nutritorem nostrum” (Adversus Haereses IV, 6,2; e ainda Adv. Haer. IV, 20, 4; Sources Chrétiennes, vol. 100, 441). Igualmente TERTULLIANO, Adversus Marcionem, passim.

[8] Um belo exemplo de exegese tipológica de Ex 27, 8-26, sem excessos alegóricos, encontra-se em S. JUSTINO, Diálogo com Trifão, 131, 4-5 e 111, 1-2.

[9] Cf. BENTO XVI, Encíclica Spe salvi, 43.

[10] Veja-se, a propósito, COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Em demanda de uma ética universal: novo olhar sobre a lei natural (2009), cap. 4.

[11] S. TOMÁS MORO, Carta escrita na prisão à filha Margarida, Liturgia das Horas, Ofício de Leituras, na festa do Santo (The English Works of Sir Thomas More, London 1557, p. 1454).

[12] “Não há, não houve, nunca haverá nenhum homem pelo qual Cristo não tenha sofrido” (CONCÍLIO DE QUIERZY (853, DH 624); cf. Catecismo da Igreja Católica, 605).

[13] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen gentium, 16.

[14] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes, 22, § 5.

[15] Vejam-se entre outros: S. IRENEU DE LEÃO, Adv. Haer. IV, 34,4; S. AGOSTINHO, Sermo 341, 9, 11; S. GREGÓRIO MAGNO, Homilia in Evangelium 19, 1; S. JOÃO DAMASCENO, Adversus Iconocl.  11.

[16] II CONCÍLIO DE CONSTANTINOPLA (553), DH 432.

[17] S. AGOSTINHO, De civitate Dei, Liber XII, cap. XX, 4: “Quapropter quoniam circuitus illi jam explosi sunt quibus ad eadem miserias necessario putabatur anima reditura”.

[18] Beato J. H. NEWMAN, Meditations and Devotions, London, 1893, 561.

[19] “Deus ama tanto o homem que, ao fazer-se Ele próprio homem, o segue até à morte e reconcilia assim a justiça e o amor”: BENTO XVI, Encíclica Deus caritas est, 10.

[20] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 486 e 535-536.

[21] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, III, q. 57, a. 6.

[22] Festa da Ascensão do Senhor, Prefácio I.

[23] Catecismo da Igreja Católica, 260.

[24] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes, 22, § 2; COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, O Cristianismo e as religiões (1997), 46-48.

[25] Beato JOÃO PAULO II, Encíclica Redemptoris Mater (1987), 7-24.

[26] Beato JOÃO PAULO II, Carta apostólica Novo Millennio Ineunte, 43: “Fazer da Igreja a casa e a escola da comunhão: eis o grande desafio que se nos apresenta no milénio que começa, se quisermos ser fiéis ao desígnio de Deus e responder também às expectativas profundas do mundo”.

[27] Catecismo da Igreja Católica, 236.

[28] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa contra Gentiles, lib. II, cap. 4.

[29] Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa contra Gentiles, lib. I, cap. 9.

[30] PIO XII Encíclica Humani generis (1950), Introdução (DH 3875).

[31] Cf. CONCÍLIO VATICANO I, Constituição dogmática Dei Filius, cap. 2; CONCÍLIO VATICANO  II, Constituição dogmática  Dei Verbum, cap.1. Cf. COMMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, A Teologia hoje (2013).

[32] CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes,19.

[33] VOLTAIRE, Trattato sulla tolleranza (cap. XIV) Editori Riuniti, Roma, 1966. p. 99.

[34] CONCÍLIO VATICANO II, Declaração Dignitatis Humanae, 7, § 3 e Declaração Nostra Aetate, 5.

[35] CONCÍLIO VATICANO II, Declaração Dignitatis Humanae,11.

[36] Cf. Beato JOÃO PAULO II, Homilia e Oração universal (confissão das culpas e pedido de perdão). Santa Missa para o dia do perdão do Ano Santo 2000 (Domingo, 12 de Março 2000); COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Memória e reconciliação. A Igreja e as culpas do passado (2000).

[37] Beato JOÃO PAULO II, Audiência geral, Quarta-feira, 10 Julho 1985.

[38] Cf. Beato JOÃO PAULO II, Encíclica Fides et ratio (1998), 1, e todo o capítulo III (24-35), sobretudo a partir do 30 em diante. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, Ia, q. 2, a. 1, ad. 1.

[39] Cf. S. JOÃO DAMASCENO, De fide orthodoxa, lib. I, cap. 3 (Sources Chrétiennes 535, p.142-149); S. TOMÁS DE AQUINO, Sententia Metaphysicae, lib. 12, lectio 12.

[40] Beato JOÃO PAULO II, Audiência geral, Quarta-feira, 10 Julho 1985.

[41] S. AGOSTINHO, De civitate Dei, XI, 10, 1 (Corpus Christianorum Series Latina 48, 330).

[42] Cf. S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, Ia, q. 3, a. 4.

[43] II CONCÍLIO DE COSTANTINOPLA (553, DH 421).

[44] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, Ia, q. 37, a. 2.

[45] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, Ia, q. 22, a. 3; q. 23, a. 8, ad. 2; I Sent., dist. 45, q. 1, ad. 3, ad. 4 (“causandi dignitas”).

[46] S. IRENEU DE LEÃO realçava a acção da omnipotência divina que capacita o homem para colaborar na sua perfeição: ““Non enim tu Deum facis, sed Deus te facit. Si ergo opera Dei es, manum artificis tui exspecta opportune omnia facientem, opportune autem quantum ad te attinet qui efficeris. Praesta autem ei cor tuum molle et tractabile et custodi figuram qua te figuravit artifex (…) custodiens autem compaginationem ascendes ad perfectum” (Adv. Haer., IV, 39, 2; Sources Chrétiennes, 100, 967. E ainda o famoso trecho de IV, 20, 7: “Gloria enim Dei vivens homo, vita autem hominis visio Dei” (Sources Chrétiennes, 100, 648)

[47] Cf. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Comunhão e serviço. A pessoa humana criada à imagem de Deus (2004), 69.

[48] S. TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, IIa-IIae, q. 83, a. 2

[49] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática  Dei Verbum,  3-4; Catecismo da Igreja Católica, 291, 1701.

[50] Cf. Beato JOÃO PAULO II, Carta apostólica  Mulieris dignitatem (1988), 6-8; Catecismo da Igreja Católica, 1702.

[51] CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes, 22, § 1; Cf. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Comunhão e serviço. A pessoa humana criada à imagem de Deus (2004).

[52] Cf. CONCÍLIO VATICANO I, Constituição dogmática Dei Filius, cap. 2 (DH 3004).

[53] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Dei Verbum, 2; BENTO XVI, Encíclica Deus caritas est (2005) 9-11; ID., Encíclica Caritas in veritate (2009), 1-9.

[54] COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Dignidade e direitos da pessoa humana (1983), sobretudo A, II, 3 (O homem redimido por Cristo).

[55]Cf. BENTO XVI, Encíclica Caritas in veritate (2009), 2.

[56] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen gentium, 8 § 3 e 40 § 1.

[57] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen gentium, cap. VIII (48-51).

[58] Cf. Catecismo da Igreja Católica, 668-676.

[59] “Ele [Cristo] é sempre jovem e fonte constante de novidade. A Igreja não cessa de se assombrar em face da «profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus» (Rm 11, 33)”: FRANCISCO, Exortação apostólica Evangelii gaudium, 11.

[60] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et spes, 15-17.

[61] Cf. Beato  JOÃO PAULO II, Encíclica  Fides et ratio, 70-72; Encíclica Veritatis splendor (1993), 1-3.

[62] Cf. BENTO XVI, Encíclica Caritas in veritate, 35-40; 57-58.

[63]Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen gentium, 2-4.